terça-feira, 4 de março de 2014

Somerset Maugham: no fio da navalha


Vicente Franz Cecim


Somerset MaughamSomerset Maugham: Dizem que o velho William Somerset Maugham, inglês de literatura mas nascido em Paris em 1874 e órfão aos 10 anos, ao morrer em Saint-Jean-Cap-Ferrat em 1965, aos 91 anos: logo, tendo sido Pai & Mãe de si-mesmo durante longos 81 anos, estava bastante chateado com os críticos que o consideravam apenas um contador de histórias. Em tempos de Joyce & invenções de linguagens, ávidas tentativas de criar novas vias para viagens através do Enigma, a Vida, faz sentido. Maugham não era um inventor de linguagens. Mas, sendo essa uma exigência profunda, também é superficial. O que é a Literatura senão a Grande Mãe Contadora de Histórias, mesmo que hoje já quase sem histórias com começo-meio-e-fim para contar, sem um fio-de-meada, como se dizia antigamente quando novelas que eram Novelos de Lãs de histórias imensas lentamente publicadas em folhetins nos jornais, que, diz-se, as famílias liam aquecidas pelo fogo das lareiras vitorianas, como o Dickens pré-kafkiano da obra prima A casa soturna ou do também alegórico e belo As grandes esperanças? Tempo balbuciante, este nosso, narrando fragmentariamente um Universo: o Mental humano, que se despedaça e vira Galáxia de ecos & rumores & espreitas & murmúrios interiores & exteriores: como em Beckett, Kafka, Proust, Rulfo. Incoerentemente, pois, neste estilhaçado Labirinto que habitamos atualmente, e como um sonâmbulo nostálgico de uma Unidade perdida, lanço este texto para Maugham, como uma homenagem ainda que tardia ao velho contador de histórias. Ele até evoca o título em português de um dos seus livros mais famosos: O fio da navalha, na verdade The razor’s edge no original. Mas, mais do que a Maugham, eu gostaria mesmo era de dedicar este texto ao seu personagem Larry Darnell, aquele que preferia não-viver a vida por fora, que estava indisponível para as seduções & armadilhas externas, pois preferia viver a vida vivendo-se: isto é, por dentro. O que é uma arte muito sutil. O FIO DA NAVALHA: Sobre isso de navalhas há um provérbio hassídico que diz: A vida é um fio de navalha. De um lado, o Inferno. Do outro, o Inferno. Então é esse o equilíbrio que Ela, a vida, a sonhada, a vôo sem asas, a agoniada transparente, a semilouca dos véus nos recobrindo, nomes por que foi chamada em Terra da sombra e do não, o terceiro livro de Andara, exige de nós? E o único Paraíso que temos ao nosso alcance consiste em nos mantermos delicadamente sobre o fio de uma lâmina: ou, como também se diz: por um fio? Como Advertência para depurarmos nossos tumultos humanos, aceitemos. Mas olhem, é preciso sempre suspeitar, para além das sabedorias da Cabala, do rancor que impregna a mística hebraica. Herança de que se fez herdeiro o misticismo católico, aquele que, contra a mansa vontade da vítima, que preferia oferecer a Outra Face, nos ofende com o peito aberto e o sangrento coração de Cristo pregado numa Cruz: segundo Suzuki, o sábio zen, imagem assustadora & insuportável para um oriental a quem, ao contrário, é oferecida à contemplação a imagem de um Buda sereno, os olhos fechados, placidamente em repouso sob uma árvore que os homens não abatem & talham & transformam em objeto de tortura em forma de cruz. Mas sigamos, sobre a lâmina sinuosa deste texto. Nietzsche, em Assim falava Zaratustra, transmuda o fio da navalha em corda. E diz: O homem é corda estendida entre o animal e o Para-além-do-homem: uma corda sobre um abismo. Perigosa travessia, perigoso caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar. Antes de prosseguir, deixem-me insistir em que Nietzsche nada tem a ver com o açougueiro Hitler, que, como os maus tradutores da obra do filósofo, induziu à expressão Super-Homem para simular o falso mito ariano da superioridade racial alemã. Nietzsche escreveu Ubermensch, que uma leitura não-manipulada entenderia, literalmente, como Para além/Uber do homem/Mensch. Só a má-fé pode explicar a má interpretação do sentido de um texto que duas páginas antes, claramente, diz: O homem é superável. O que fizestes para o superar? Rudy EspinozaMas não era exatamente disso que eu queria falar. Aliás, eu não queria falar de nada: estou só falando. SILAS & O INFINITO: Bem, talvez seja mais simples do que parece fazer a travessia sobre o fio da navalha hassídica ou a corda de Nietzsche. Talvez baste fazer isso cantando, como um Homo Ludens de Johan Huizinga, superação do Homo faber & do Homo Sapiens, como o Ubermensch de Nietzsche quer ser uma superação do homem como nós ainda o conhecemos. Tentemos. A música. Ouçamos a música, então. Quem sabe aquela mesma música inaudível que escutam os adultos de Brueghel quando, possuídos pela Alegria, se tornam outra vez crianças? Por enquanto, só ouço Jorge Mautner, ouçam comigo: Andando e cantando/ no fio da navalha/ eu sou um faquir/ eu sou um palhaço/ e um grande canalha. Mas talvez vocês achem que isso é só música popular, sem valor como referência. Que tal então a Poesia? Ei-la, Mário de Sá Carneiro, o amigo suicida de Pessoa: Eu não sou eu nem sou o outro/ Sou qualquer coisa de intermédio/ Pilar na ponte do tédio/ Que vai de mim para o Outro. Vejam: o fio da navalha que virou corda sobre o abismo agora acaba de virar ponte do tédio. De metaformose em metamorfose, onde é que nós iremos parar? O homem é travessia, dizia Guimarães Rosa. Que logo acrescentava: Viver é muito perigoso. E Silas de Oliveira, o sábio do samba & mestre do jongo, anunciado lá encima e até agora oculto? O que tem a ver com isso? Ó Ariadne, dá-me o também o teu fio para que eu, como Teseu, possa sair deste labirinto de Minotauro onde estou cada vez mais extraviado neste texto que vai indo ao sabor de si mesmo. Se meu apelo for atendido, trarei mestre Silas pela mão. E com ele o Infinito. PASCAL & O SAMBA: Agradeçamos a Ariadne, ou a Marcel Proust, por eu ter conseguido emergir daquele Labirinto de Texto de Creta em que havia me metido. Pois escrever também é andar sobre uma corda suspensa sobre um abismo, perigosa travessia, perigoso caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar, como dizia Nietzsche. Eis-me aqui, então. E como foi prometido, trazendo pela mão Silas de Oliveira que vai nos dizer o que é o Infinito. Como, um simples sambista de morro? Pois é, vejam vocês: exatamente como Somerset Maugham era um simples contador de histórias. E já que voltamos às histórias que se contam, tantas histórias ainda para contar, ah, deixem que eu conte mais essa para vocês. Um dia, Silas de Oliveira amanhecia mais uma vez com o seu amigo inseparável Mirinho ao lado de uma também inseparável garrafa de cachaça. Talvez permanecessem como aqueles homens de quem Max Ernst disse que nunca saberão. Mas Silas perguntou: - Mirinho, você sabe o que é o Infinito? Talvez nesse momento um outro bêbado fosse anonimamente subindo lá adiante uma ladeira de favela, não precisamente indo para o céu, embora parecesse, na luz irreal daquela manhã: irreal como são todas irreais as luzes das manhãs que nascem para os olhos daqueles que Rudy Espinozaatravessam insones noites ébrias. O que é certo é que Silas disse: - Você vai andando por ali e o Infinito vai te acompanhando. Mirinho comentou envaidecido: - Um poeta nos mínimos detalhes, o meu amigo Silas de Oliveira. A manhã já podia nascer plenamente, radiosa. Por mim, não conheço definição mais lúcida e translúcida de Infinito, isso que cada homem traz dentro de si, seja como realidade, seja como desejo de que se realize. Pois vocês podem até não acreditar, mas o Zen do Povo existe. Senão, como explicar que a frase de Pascal, o místico cristão, um dos seres que foi mais íntimo da sensação de infinito: Le coeur a des raisons que la raison ne connait, apareça subitamente, saindo das páginas vertiginosas dos Pensamentos, na letra do samba que diz: O coração tem razões que a própria razão desconhece. São indícios de que existe uma sabedoria comum à condição humana, que não se aprende na escola. E é menos absurdo aceitar essa versão generosa do que a hipótese de que o sambista traduziu a frase do original francês, depois de ler os Pensées. Entre um gole de cachaça & outro, certamente. O Zen do Povo realmente existe. Há muitos outros indícios: por exemplo, quando alguém, mesmo pobre & faminto & esfarrapada vítima social deste país de III Mundo diz, ao nosso lado: Vou me fingir de morto. O que você acha que ele está dizendo? Do fundo da sua Ignorância Culta, entenda que ele está citando a filosofia Zen que deu origem ao Judô. Embora não saiba necessariamente disso. E eis mais uma história. Vamos sentar um pouco na beira da estrada do fio da navalha e, enquanto descansamos desta obscura viagem, ouvi-la. AS ESTAÇÕES: Vindo o Inverno, um mestre Zen viu que as árvores reagiam à neve de maneiras diferentes. Umas, resistiam, e sob o peso da neve seus galhos acabavam se partindo. Outras, cediam ao peso da neve, e, flexíveis, em vez de se partirem se curvavam até o chão. Quando o Inverno acabou: as que haviam resistido estavam irremediavelmente mortas, as que haviam cedido, lentamente se distendiam outra vez e voltavam a se erguer, ainda vivas. As segundas haviam se fingido de mortas até o Inverno passar. Pois não é exatamente isso o que o Zen do Povo diz: Não há bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe? A Vida, como as Estações, também tem seus Invernos & Primaveras & Verões & Outonos. Ou, como diz um outro sábio popular, Paulinho da Rudy EspinozaViola: As coisas estão no mundo, só o que é preciso é aprender. Aprenda a viver o Verão como Verão & o Inverno como Inverno. Não é tão difícil assim, quando se trata das Estações lineares. Quero ver é você aprender a viver as Estações e os Momentos mais sutis: a Primavera como Primavera & o Outono como Outono. Isto é: as Ambigüidades. Para isso, ajuda ler Kafka, Considerações sobre o pecado, a dor, a esperança e o caminho verdadeiro, onde ele diz: Existem dois pecados capitais no homem, nos quais se originam todos os demais: impaciência e indolência. A impaciência fez com que fosse expulso do Paraíso, ao qual não retorna por causa da indolência. Mas talvez não existe mais que um só pecado capital: a impaciência. Por causa da impaciência foi expulso, por causa da impaciência não retorna. RAMANA: Caminhando sobre o fio da navalha, é sempre bom ir bem acompanhado. Por exemplo, de Ramana Maharshi, de quem Jung disse que na Índia é considerado o ponto mais imaculado na brancura dos céus. E que tinha um único ensinamento a dar: a pergunta: Quem sou eu? Que ele recomendava que nos fizéssemos permanentemente, para fazer aflorar, pela dissolução do tolo & arrogante Eu Inferior, vulgarmente identificado como Ego, o luminoso Eu Superior, aquele que, nunca-nascido, também nunca morre. E que, afinal, é a única realidade na irrealidade em que somos. Já que somos feitos do mesmo estofo de que são feitos os sonhos, como dizia Shakespeare. Em boas companhias, se aprende coisas. Como eu aprendi uma vez. Vivendo uma situação brutal, tendo caído numa armadilha da vida, quanto mais tentava vir à tona, mais me afundava. Então perguntei ao Velho Sábio, o I-Ching: - O que devo fazer? - A montanha não se move, ele me respondeu. Parei de lutar, me fingi de morto, e uma semana depois estava livre. Terá sido em companhias assim que andou Larry Darnell, o personagem de Somerset Maugham a quem este texto inicialmente foi dedicado? E com isso voltamos ao começo: o anel se fecha. Mas mesmo não sendo Larry Darnell, ou Bartleby, o personagem mágico & imponderável de Hermann Melville que a tudo que lhe propunham dizia: - Prefiro não fazê-lo, ou nem mesmo sendo alguém que não é um personagem de romance mas um ser real, como o meu filho Arthur Cecim, alguém que nunca lhe dirá Não nem nunca lhe dirá Sim, pois vive aprendendo a ser só um habitante do Talvez das eternas disponibilidades efêmeras: creia: A mente é tudo. Faz do Céu um Inferno e do Inferno um Céu. O que o Zen me ensinou e eu ensinei ao Arthur e ele agora vai ensinando ao seu filho Arthur Franz Cecim. Quem sabe assim, de gerações em gerações, mais leves de corpo & mais pesados de espírito, conseguiremos, pacientemente, fazer a travessia sem já nos ferir tanto, e uns aos outros, no fio da navalha? É possível. Se mais fino for o fio das ternuras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário