sexta-feira, 12 de julho de 2013

A felicidade segundo o Budismo.

 

 

Existindo inexoravelmente o sofrimento, é possível ser feliz?

O budismo parte de uma constatação difícil de assumir, a de que o sofrimento é inerente à condição humana — todos estamos fadados ao sofrimento de nascer, da doença, da velhice e da morte — para fazer a pergunta crucial: existindo inexoravelmente o sofrimento, é possível ser feliz? Se é, como fazer para obter essa felicidade?
Para o budismo, todo sofrimento é gerado por uma concepção errônea da realidade. Acreditamos que as coisas duram, e que têm existência sólida; negando a impermanência e a transitoriedade da vida, apegamo-nos às pessoas, coisas e situações de que gostamos, sentimos aversão pelo que não gostamos, e permanecemos assim, em uma condição que é definida por uma só palavra: ignorância. Na ignorância, o sofrimento é inevitável.
Mas é possível viver de outro modo. Se nos dispusermos a examinar cuidadosamente a nossa mente, buscando compreender realmente o que é a realidade, o mundo, a vida e o que somos nós mesmos, há um caminho para a felicidade — uma felicidade duradoura, profunda e que se traduz em ações compassivas.
Essa felicidade não pode se limitar a umas poucas sensações agradáveis, a alguns prazeres que logo terminam, nem a emoções ou estados de ânimo passageiros. A felicidade é uma profunda sensação de florescer que surge em uma mente excepcionalmente sadia, como diz Matthieu Ricard em seu livro Felicidade, que em breve será publicado no Brasil. Como vimos, ela deve ser também uma maneira de compreender realmente o mundo, a nossa mente, e nós mesmos, obtendo uma visão, por assim dizer, “real” de tudo. E se às vezes pode ser difícil mudar o mundo exterior, sempre é possível mudar a maneira como o vemos. Conta uma história budista que um homem desejava caminhar confortavelmente pelo mundo afora, mas as trilhas e estradas eram sempre muito acidentadas… o que fazer: andar descalço e tentar revestir todos os caminhos de relva, ou vestir uma sandália?
Se não é possível alterar toda a condição da existência humana, para todos, neste momento, então vamos transformar a nossa mente.
A felicidade verdadeira não é algo que vem do céu (e depois se vai…), mas um estado mental que conquistamos, como uma habilidade adquirida. É profunda, duradoura, pois apóia-se na percepção correta do que é o mundo, do que é a natureza e a condição humana. Essa felicidade tem como fundamento a paz e a liberdade interior, exercitada e obtida através do auto-conhecimento e da contínua prática da compaixão.
Se o sofrimento é uma realidade, a visão correta do mundo nos afirma que tudo é um sonho.
Tudo é impermanente. Amanhã, as árvores, as pessoas, as coisas, tudo já não será igual.
Civilizações indestrutíveis já viraram cinzas; pessoas poderosíssimas também. As nossas casas, prédios, monumentos, estradas, automóveis, todas as nossas coisas, no tempo devido terão virado pó, ou outra coisa. Até as montanhas, o relevo, a água, o próprio planeta — todos terão o destino de transformarem-se em outra coisa. Essa transformação em si, se estivermos apegados à realidade como sólida e imutável, já é fonte de sofrimento. Mas se encararmos de frente a impermanência, se buscarmos olhar o mundo por dentro dela, veremos que ao aceitá-la, em vez de perdermos o mundo, em vez de mergulharmos definitivamente na angústia inútil de tentar preservar o que está destinado a mudar, descobriremos que é possível ajudar os outros, viver o momento de maneira plena, buscando gerar atos que por sua vez gerem melhores condições para a vida dos outros e de nós mesmos. Só ao aceitar integralmente a impermanência sentiremos o verdadeiro gosto do momento presente ou, se quisermos chamar assim, da eternidade.
Há uma ética para que esses atos produzam realmente a felicidade. Tudo o que geramos, volta-se para nós — não de um modo linear ou banal, mas com toda a certeza colhemos o que plantamos. Portanto, se a vida humana é preciosa, e ela termina, para sermos realmente felizes há que descobrir um modo de viver que traga também aos outros a felicidade, que cuide do que é possível a cada um cuidar. Essa mente que busca trazer ao outro o melhor que pudermos, gerando compaixão pela dor do outro e desejando que ele obtenha a felicidade, é chamada de bodhicitta, e é a mente que dá base ao surgimento da verdadeira liberação. É a mente que tem como fundamento a compaixão e o altruísmo.
Mas é preciso despertar. Vivemos em um círculo vicioso de sofrimento que gera sofrimento. Se ele não for rompido, pela inércia jamais chegaremos à felicidade. Se olharmos bem para a nossa mente, descobriremos que ela está repleta de emoções negativas que se auto-perpetuam pela nossa omissão em tratar delas. Desse modo é impossível ser feliz. Mas se prestarmos realmente atenção ao nosso fluxo mental, descobriremos que essa atenção já tem, ainda que não possamos fazer imediatamente mais nada, um efeito curativo sobre nós. O pensamento observado comporta-se diferentemente do pensamento não observado — por pensamento, aqui, entenda-se a própria mente, com tudo o que temos dentro dela: sentimentos, percepções, pensamentos, julgamentos. Ao observarmos tudo isso, pouco a pouco a mente se liberta dessa camada obscurecida, por assim dizer, de emoções negativas, e revela a sua verdadeira natureza, que é a própria compaixão e a sabedoria. Quando a nossa mente se torna silenciosa, quando nos desapegamos da falsa idéia de permanência, quando entramos no vazio, percebemos que ele é luminoso, repleto de sabedoria e compaixão. E temos a vida nas mãos, pronta para ser vivida, preciosa desde sempre e para sempre, uma oportunidade única.
Viver assim, desperto e livre de apegos, pronto a aceitar o que é necessário fazer para tornar a vida melhor para si e para os outros é, em si, a própria felicidade. É uma vida plena, intensa, em que as emoções não são negadas ou desaparecem, mas se transformam, ou melhor, se integram ao todo harmonioso. Viver assim é viver na criação, na poiesis, na poesia, ainda que seja na condição ou atividade mais envolvida com a vida concreta. A espiritualidade do budismo não é “new age”, não é “fashion”, não é uma prática exótica vinda do oriente. É uma espiritualidade encontrada na vida cotidiana.
Aprendemos a ver todo o mundo (e também nós mesmos) como o corpo sagrado da deidade; todos os sons são o seu som, todas as formas são a sua forma, todas as cores são a sua cor. Não há um “outro” lugar, ou outro tempo, em que viremos um dia a ser felizes. A felicidade é aqui mesmo, no presente — nem no passado, nem no futuro, nem em outro lugar, nem com outras pessoas. Ela está na atitude de viver a vida com compaixão, buscando sempre trazer a felicidade para o outro, usando de todos os meios hábeis para que ele a consiga.
A meditação, ou observação atenta da própria mente, traz efeitos radicais sobre a neuro-psico-fisio-imunologia — é isto que a neurociência de hoje descobre por meio de experimentos cada vez mais reveladores. Meditar faz bem à alma e à saúde; torna-nos mais abertos para tudo o que demande a nossa atenção ou cuidado. Transforma o nosso próprio funcionamento cerebral. A realidade se transforma acompanhando a nossa transformação interior.
É por isso que, às vezes, torna-se difícil compreender o que é proposto com a prática da meditação para quem não medita. Mas meditar não é só, ou fundamentalmente, sentar-se em posição de lótus para, em silêncio, observar a própria mente. Com a atitude adequada, qualquer ação diária torna-se meditação. O amor faz parte, comer e beber faz parte, trabalhar faz parte, não fazer nada e descansar faz parte… quando descobrimos as camadas mais profundas da mente, e a sabedoria e compaixão que se revelam dessa descoberta, tudo isso se torna a nossa natureza.
Porque, na verdade, sempre o foi — nós é que estávamos distante dela por causa dos nossos condicionamentos sociais, conceitos, emoções negativas e hábitos atávicos, que obscurecem essa nossa verdadeira natureza.

Artigo de: Arnaldo Omair Bassoli Jr, Psicólogo e professor do curso Felicidade do Instituto Palas Athena

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