sexta-feira, 27 de março de 2015

"Meu marido não entende as emoções"


Ele tem síndrome de Asperger, um transtorno que causa dificuldade para se relacionar com outras pessoas. Superamos esse obstáculo para nos casar e somos felizes há mais de 20 anos



MUCIANA CAMPOS, EM DEPOIMENTO A ISABELLA CARRERA

23/04/2014 07h00 - Atualizado em 23/04/2014 13h20









▪ São João de Meriti, 1988 ▪


Conheci o Wilson quando tinha 18 anos, e ele 19. Trabalhávamos como voluntários numa organização e havíamos frequentado a mesma escola em São João de Meriti, no Rio de Janeiro. Quando se aproximou para falar comigo, Wilson me cativou com sua gentileza e intensa sinceridade. Ele me elogiava tanto que me sentia a última Coca-Cola no deserto. Depois do bate-papo, achei sua personalidade maravilhosa e disse  para meus colegas: “Um dia vou me casar com ele”. Naquela época, Wilson ainda não tinha sido diagnosticado com síndrome de Asperger, um transtorno que faz parte do espectro do autismo. Pessoas dentro desse espectro têm dificuldade de interagir, porque não conseguem interpretar as emoções dos outros. Em casos de Asperger, como Wilson, não há deficiência intelectual ou no desenvolvimento da linguagem, como no autismo.

Wilson só foi diagnosticado com 39 anos. Até então, achávamos que sua dificuldade de se relacionar socialmente e de encarar situações novas era causada por excesso de ansiedade. Quando pequeno, ele não falava o que queria. Levava a mãe pela mão para mostrar. Só desenvolveu a fala aos 3 anos, depois de um esforço conjunto da família, que não respondia aos pedidos que Wilson fazia usando gestos. Para ser atendido, ele tinha de falar. Aos 12 anos, começou a fazer terapia e a tomar medicamentos que ajudavam a controlar suas crises de ansiedade. Esse tratamento continua até hoje e foi fundamental para que ele conquistasse uma vida independente.

Mesmo assim, na adolescência, Wilson odiava qualquer tipo de proximidade física, sobretudo o toque, e ambientes cheios. Coube à professora de ciências do colégio lhe explicar sobre relações sexuais, já que seus pais não tocavam no assunto e acreditavam que fosse gay. Ele não queria sair com as meninas que o paqueravam.



UNIÃO O casal Muciana Campos e Wilson Marx, em foto atual no Rio de Janeiro. A dificuldade dele para interpretar emoções não foi empecilho no casamento de 22 anos (Foto: Stefano Martini/ÉPOCA)UNIÃO
O casal Muciana Campos e Wilson Marx, em foto atual no Rio de Janeiro. A dificuldade dele para interpretar emoções não foi empecilho no casamento de 22 anos (Foto: Stefano Martini/ÉPOCA)

Muciana Campos (Foto: ÉPOCA)

Após nosso encontro durante o trabalho voluntário, fiz várias investidas, mostrando meu interesse em Wilson. Ele dizia que não tinha vontade de me namorar porque não conseguia discernir sentimentos (apesar de confessar ter desejos sexuais). Combinamos que seríamos só amigos. Aos poucos, nos tornamos inseparáveis. Ele ficava confortável com essa proximidade, porque nossa relação não passava de amizade. Eu dizia para ele que havia partido para outra. No fundo, continuava apaixonada. Depois de dois anos, confessei que o amava e não conseguiria mais viver daquele jeito – ou namorávamos ou não nos veríamos mais. Expliquei que já agíamos como um casal. Saíamos juntos o tempo todo, telefonávamos um para o outro antes de dormir. Só não tínhamos contato físico. Então, por que não assumir? Nesse dia, ele me aceitou em namoro. Não pude me segurar: avancei e beijei-o nos lábios. Foi horrível! Wilson ficou tão nervoso que teve uma arritmia cardía­ca e foi parar no hospital. Prometi que não o tocaria mais até que se sentisse preparado. Esperei desesperada e pacientemente. Parecia que doía não poder pegar na mão dele ou abraçá-lo. Seis meses depois, ele me beijou durante um passeio – dessa vez, estava mais calmo, sob o efeito do remédio. No fim, a espera foi boa, porque permitiu que o relacionamento amadurecesse. Transamos só quando nos casamos, dois anos depois. Por causa da ansiedade dele, um simples toque poderia ser desconfortável.

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Sofremos muito preconceito por nossa união. A família do Wilson ficou incomodada quando ele passou a pensar por si só. No início, até minha mãe fazia algumas objeções. Ela achava que não combinávamos. Ele era todo educado, tinha um jeito clássico e recatado, enquanto eu era considerada bagunceira e “maluquete”. Hoje, minha mãe o acolheu como um filho, e isso foi importante para a estabilidade dele e de nosso casamento. Minha mãe sempre frisou que cada um de nós deveria abrir mão um pouco do seu jeito para se adaptar ao mundo do outro.  Nós conseguimos. No começo, foi difícil. Meu temperamento era mais explosivo do que é hoje, e as brigas eram frequentes.

Eu me irritava quando ele não entendia o que eu sentia. Na verdade, me irrito até hoje, apesar de agora nossa relação ser calma e estável. Preciso sempre me lembrar de que ele tem dificuldade de decifrar emoções – é uma espécie de cegueira emocional. Ele tem de me perguntar o significado de minhas reações. A primeira vez que eu disse “eu te amo”, ele me respondeu “idem”. Fiquei furiosa. Parecia que ele estava tirando sarro de mim.
No dia em que dei  o primeiro beijo  no Wilson, ele  teve uma arritmia cardíaca e foi parar no hospital. Prometi que não o tocaria mais até que ele estivesse preparado (Foto: Arq. pessoal)

Wilson é romântico de outras maneiras. Pode não me dar flores, mas me traz água quando estou com sede à noite. Ficou oito meses sem tocar violino, uma de suas paixões, por causa de minha enxaqueca crônica. Ele até aumentou a dosagem de seus medicamentos contra ansiedade para conseguir assistir a filmes de ação com nossos filhos. É uma demonstração de amor e dedicação. Não trocaria minha vida, meu casamento, por nada. Tenho amigas casadas com maridos que não têm Asperger e invejam como Wilson e eu temos uma relação afetuosa.

O diagnóstico da síndrome de Asperger foi feito há apenas cinco anos, num período em que as crises de ansiedade do Wilson pioraram. Acontecia de estarmos vestidos, prontos para sair, e ele não conseguir botar o pé para fora de casa. Seu batimento cardíaco acelerava quando amigos vinham nos visitar, e eu inventava alguma desculpa para disfarçar o motivo de ele estar trancado no quarto.

Médicos e psicólogos que reavaliaram o caso dele concluíram que a ansiedade era, na verdade, sintoma das dificuldades de interação causadas pelo Asperger. A família inteira passou a contar com apoio psicológico, para que pudéssemos entender Wilson melhor. Temos três filhos: Leony, de 14 anos, Joyce, de 18, e Melyssa, de 7. O diagnóstico do Wilson tornou nossa rotina melhor, pois entendemos o que o estressava e podemos evitar. Ele não suporta que a gente deixe a cozinha bagunçada ou que as coisas dele sejam mudadas de lugar.

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O diagnóstico acabou unindo nossa família. Somos muito ligados para não deixar Wilson num mundo à parte. Nosso lar é harmonioso e organizado, para que um dia a dia conturbado não esgote Wilson. Para as crianças, Asperger é apenas uma dificuldade que seu pai enfrenta, igual a tantas outras enfrentadas pelos pais de seus colegas. Elas até brincam que ele é o Sheldon, personagem famoso do seriado americano The big bang theory. Ele também tem um lugar reservado no sofá só para ele, é fascinado por ciências, fala de um jeito pomposo e nos chama incessantemente pela casa, mesmo quando estamos ocupados. Precisamos atender imediatamente, senão ele se fecha e não pede ajuda nunca mais.

Sempre batalhamos para superar os percalços impostos pela síndrome de Asperger a nosso amor. Nos completamos e suprimos as necessidades emocionais um do outro para, assim, sobrevivermos às adversidades. Gosto de dizer que sou ligada no 220 volts, e ele no 110 volts. Eu sou o acelerador do Wilson, e ele meu freio.





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