quarta-feira, 10 de julho de 2013

A mulher que escreve com os olhos



Quem é a advogada Alexandra Szafir, que, com os músculos paralisados, luta com humor pela vida, trabalha e escreveu um livro escolhendo letras com o olhar. Lançamento da obra acontece nesta segunda, em São Paulo


Antonio Carlos Prado

 

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SUPERAÇÂO
Alexandra e um de seus cães, Laurinha


Atores profissionais não teriam feito melhor: uma mulher numa cadeira de rodas, empurrada às pressas e aos solavancos por um homem, atravessa o saguão do hospital São Luiz, em São Paulo, numa fria madrugada de abril de 2006. Se cadeiras de rodas já chamam a atenção, mesmo nesses locais, esse casal tinha algo a mais. Bem a mais: ela, a cadeirante, vestia-se como a mais legítima prostituta – com direito a botas vermelhas e saia escandalosamente curta. Ele, o condutor da cadeira, trajava-se à perfeição como um explorador de mulheres – sem lhe faltarem os sapatos bicolores e a gomalina no cabelo. A afobação se justificava, uma vez que a mulher sangrava na cabeça.

Ao alcançar o balcão da recepção, o homem foi firme:
– Temos hora marcada com o professor de neurologia Acari Oliveira. Trata-se de internação. A recepcionista achou esquisito e hesitou. O macho, durão:
– Ela é prostituta e eu, cafetão. Brigamos e esmurrei-lhe a cabeça. Agora, por favor, o professor Acari. Imediatamente.

O médico foi chamado, cumprimentou o casal com bom humor e a moça foi internada. O homem instalou-se no mesmo apartamento na categoria de namorado.

Como já se disse, gente afeita ao palco não teria se saído melhor e isso deixa claro que o casal em questão trabalha em outro ramo. Tal ramo, no entanto, é claro que nada tem a ver com o lenocínio. A moça se chama Alexandra Lebelson Szafir, é paulista e conhecida em todo o Brasil pelo seu brilhantismo como advogada. É filha de uma das mais tradicionais e socialmente bem colocadas famílias judias do País, estudou no difícil colégio israelita I.L.Peretz e formou-se em direito pela Universidade de São Paulo. Tem um casal de filhos (Pedro e Isabella) e três irmãos: Salomão, Priscila e o ator e empresário Luciano Szafir (gêmeo da irmã). Seu pai se chama Gabriel, sua mãe é a empresária, estilista e socialite Betty Szafir. O namorado, Álfio D’Ávila, não fica atrás: é um dos mais famosos e bem-sucedidos promotores de eventos e produtores musicais brasileiros, acumulando no currículo, por exemplo, o fato de ter colocado no palco o roqueiro Raul Seixas em seu último show antes de morrer. De volta àquela madrugada, Alexandra tinha mesmo internação marcada (aplicação de hemoglobina), estava em cadeira de rodas porque o movimento de suas pernas se fazia altamente comprometido, mas antes de ir ao hospital decidira curtir, ao lado do inseparável Álfio, uma balada à fantasia. Ao sair do carro, um Doblò branco que mais parecia ambulância e dava o conforto necessário à cadeirante, ela caíra e ferira a cabeça. Daí a encenação.

Sabe-se que o destino estoca na paciência de alguns seres humanos o mais natural e homeopático de todos os remédios, o tão decantado “rir para não chorar”. Então, por que não aproveitar, mesmo em cadeira de rodas e com dor, uma festa no próprio dia da internação? Por que não se dar esse prazer se dessa internação poderia sair um terrível veredicto? Veredictos jurídicos, esses Alexandra tira de letra em seus mais de 20 anos de advocacia, mas quão assustador pode ser um veredicto médico? Dependendo de qual seja, só cabe impetrar recurso a Deus ou só mesmo uma Alexandra para encará-lo com o seu remédio de rir – não o rir dos tolos, mas, isso sim, o bom humor da inteligência temperado na garra pela vida, na altivez e força de caráter. A hemoglobina não foi eficaz e veio assim o diagnóstico encurralando Alexandra, 43 anos, no traiçoeiro corredor da morte das doenças genéticas degenerativas.

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O processo de escrita do livro (acima): o namorado,
Álfio, aponta a letra e Alexandra arregala os olhos


Alexandra Szafir é portadora de esclerose lateral amiotrófica (ELA), um buraco negro e sem cura da medicina, que progressiva e avassaladoramente paralisa os músculos e leva ao falecimento. Atualmente, o máximo que ela faz, com o máximo esforço, e no máximo período de tempo, é arregalar os olhos quando Álfio lhe aponta uma letra numa tabela com o alfabeto e ela quer sinalizar que tal letra compõe a palavra que vai formular. É assim que Alexandra se comunica, é assim que Alexandra opina em processos e “redige” habeas corpus, é assim que Alexandra escreveu o livro “desCasos, uma Advogada às Voltas com o Direito dos Excluídos”, a ser lançado na segunda-feira 31 pela Editora Saraiva, em São Paulo, no Iate Clube de Santos (às 19 horas, na avenida Higienópolis, 18). “Minha irmã sempre fez tudo o que quis”, diz Priscila. “Agora era o livro, e ele está pronto.” Escrever mal, dessa forma, já é muito. Só que Alexandra dá uma aula de excelente escrita e estilo, até porque, se as mãos fazem o texto (no caso dela, os olhos), são a originalidade e a integridade do caráter do autor que compõem a obra. Mede-se isso nas palavras de seu sócio, o advogado Alberto Zacharias Toron: “O livro escancara as entranhas da Justiça Penal, expondo suas mazelas e a truculência daqueles que Michel Foucault chamava de pequenos ortopedistas da moral.” Reunindo casos reais nos quais atuou, as veias que saltam de paixão e desespero, as vozes que gritam e as mãos que se estendem no livro são de desvalidos e injustiçados. Alexandra delegava a colegas audiências de defesa de colarinho-branco, que renderiam milhões, para impedir despejo em favela. Educada para “patricinha”, o que a tornou assim? “Nada a tornou”, diz Priscila. “Nasceu com esse gene, até de cachorro de rua ela cuidava.” “Alexandra não está comprometida com a versão da advogada, ela é comprometida com a busca da justiça. Tem olho clínico para a injustiça”, diz a também sócia e advogada Heloí­sa Estellita.

Já paralisada pela doença, Alexandra começou a escrever com o nariz através de um programa especial de computador. Quando também o nariz se cansou, o arregalar de olhos entrou em ação. “Ela tem uma força inquebrantável”, diz Álfio. Na verdade, não só para escrever e trabalhar. No início da doença, em 2005, quando ainda andava, embora com muita dificuldade e claudicando, fez questão de ir ao show dos Rolling Stones, no Rio de Janeiro, e percorreu a pé distâncias nas quais muito atleta de fim de semana, sarado, pediria água. No domingo 23, foi com o namorado assistir ao novo filme de Woody Allen e adorou. Alexandra é lição de vida e superação, traduzida agora em livro, olhando para o dedo o namorado que lhe aponta letras – com o auxílio incansável da enfermeira Magna Coutinho.

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“Alexandra é a mulher da minha vida. Fala pelos ‘cotovelos’,
mas com os olhos. E nos ensina a viver”

Álfio D’Ávila, promotor de eventos e produtor musical

Namorado, aliás, que é outra lição de vida. Álfio tinha tudo para “se mandar” quando Alexandra adoeceu porque eram, então, seis meses de relacionamento. Isso ainda em 2005. Ele está até hoje com a tabela de letras na mão.

SERVIÇO

Lançamento de "desCasos - Uma advogada às voltas com o direito dos excluídos" em São Paulo
Segunda-feira 31 de maio, às 19 horas
Iate Clube de Santos (unidade São Paulo) - av. Higienópolis, 18
Leia o capítulo "Quem mandou morar na favela?" do livro “desCasos, uma Advogada às Voltas com o Direito dos Excluídos”, de Alexandra Szafir

Quem trabalha com direito penal conhece a cor da pele amarelada, típica de quem está preso.

Também há um odor característico, para o qual não encontrei outro nome senão “cheiro de cadeia”.
Sempre que alguém é solto e vem ao meu escritório dias depois, impressiona muito a diferença física que alguns dias de liberdade produzem. Num caso extremo, ao entrar na sala onde meu cliente me aguardava, não o reconheci e achei que tinha entrado na sala errada — pedi desculpas e saí, tamanha a diferença já feita por poucos dias fora da cadeia.
Daí decorre a enorme vantagem de fazer um júri com o réu solto. Com raras exceções, qualquer pessoa presa durante um tempo fica com cara de bandido, ainda que não o seja, o que, evidentemente, piora a impressão causada aos jurados. E isso pode impedir, portanto, um julgamento verdadeiramente justo. Para fazer uma analogia, é mais ou menos como se um jogo de futebol já começasse com o placar de 1 a 0 (ou mais, dependendo do caso) a favor do time adversário.
Quando o acusado está preso numa carceragem de Distrito Policial, esse efeito se maximiza. Em ótima hora, a gestão do então Secretário da Administração Penitenciária de São Paulo Nagashi Furukawa acabou com a prática de manter presos por meses, e às vezes até anos, em carceragens de Distritos Policiais. Originalmente destinadas a serem provisórias, por um ou dois dias, acabaram tendo esse objetivo deturpado em razão da superlotação dos estabelecimentos penitenciários.
O resultado? Todos os cidadãos, mesmo os que não militam na área penal, deveriam ir ver in loco, pois, por maior que fosse a minha capacidade descritiva, não conseguiria provocar o horror que a visão desses lugares inspira.
Trata-se de um pequeno pátio cercado por celas também pequenas, que geralmente abrigavam o dobro ou o triplo de sua capacidade. Assim confinados, os presos passavam meses sem condições mínimas de higiene.
Em certos Distritos nem sequer existia um pátio, impossibilitando que eles vissem a luz do sol e provocando-lhes inúmeras doenças. O cheiro sentia-se de longe. Certa vez, chegando cedo para uma visita, quando as celas ainda não haviam sido abertas para os corredores, vi os presos dormindo em pedaços de pano amarrados às grades, como arremedos de redes, um por cima do outro, pois não havia mais lugar para dormirem no chão.
Também não era raro que, na impossibilidade de se deitarem todos ao mesmo tempo, os presos se revezassem em turnos para dormir.
Fui nomeada para defender um réu num Júri, quase às vésperas de ele acontecer — assim, não houve tempo para visitar o acusado antes do dia do julgamento. Foi somente aí que o conheci. Ele estava preso numa carceragem de Delegacia de Polícia fazia um ano e oito meses e tinha, portanto, aquela deplorável aparência típica.
Olhando o processo, verifiquei que, após responder parte dele em liberdade, o réu havia sido preso pelo seguinte motivo: mudara de endereço!
Ele tomara, no entanto, a cautela de avisar o juiz sobre a mudança, por meio de petição subscrita por advogado, na qual informava o seu novo endereço. Pouco tempo depois, sobreveio a sentença de pronúncia — decisão que determina que o réu seja julgado pelo Tribunal do Júri. Quando, porém, a oficial de justiça foi ao endereço informado para intimá-lo, teria constatado que o número não existia naquela rua, dando-o por local incerto e não sabido. Assim, entendendo que ele não queria estar à disposição da Justiça, o juiz decretou sua prisão preventiva. Ninguém fez nada a respeito, pois a essa altura o advogado contratado renunciara à defesa, provavelmente porque o réu não tinha mais condições de pagá-lo.
O réu acabou sendo preso, o que o levou a perder o emprego, e, no dia do Júri, estava encarcerado havia um ano e oito meses numa Delegacia de Polícia sem que ninguém tivesse tomado qualquer providência em seu favor. Por sorte havia um erro no libelo de acusação, assim o julgamento não pôde ser realizado; finalmente, o juiz entendeu não ser justo mantê-lo preso em razão de um atraso causado pela própria acusação. Decidiu soltá-lo. Naquele momento, para evitar novo decreto de prisão, pedi a ele que me informasse com urgência seu endereço correto, para que eu pudesse passá-lo ao juiz.
Para minha surpresa, ele me disse que seu endereço era exatamente aquele que havia informado antes. Jamais se mudara de lá (mora ali até hoje), e o número informado anteriormente, segundo ele, estava correto.
Tendo em vista a certidão da oficial de justiça, que dizia o contrário, perguntei se possuía algum tipo de prova da existência do endereço. Ele me deu uma correspondência bancária que lhe fora enviada pelos Correios e entregue pelo carteiro naquele endereço. Por uma coincidência divina, a data de tal correspondência era a mesma da certidão informando que o endereço não existia.
Em resumo: o réu ficou preso durante um ano e oito meses naquele local infecto porque a oficial de justiça não procurara seu endereço direito e prestara uma informação errada ao juiz. Obviamente, se tivesse dinheiro para pagar um advogado que se interessasse em ir à prisão falar com ele nesse período, tudo teria sido esclarecido antes, poupando-o da injusta privação de liberdade.
Como não poderia deixar de fazer, pedi a punição da oficial de justiça.
Tais procedimentos correm em segredo de justiça, portanto não tive acesso a eles, mas soube que ela acabou sendo inocentada. Ao externar minha revolta com o juiz, ele, para meu estarrecimento, me disse o seguinte: “Doutora, esses endereços em favela são mesmo difíceis de encontrar.”
Assim, concluí que a culpa de todo o ocorrido era do réu. Afinal, se ele morasse nos Jardins, a oficial de justiça certamente não teria encontrado dificuldades para localizar sua residência. Mesmo assim, por teimosia, ingressamos com ação indenizatória, que aguarda julgamento.
Mas de uma coisa não resta dúvida: ele foi preso por ser pobre (afinal, quem mandou morar na favela?) e ficou preso por tanto tempo também por ser pobre e não ter advogado particular que fosse falar com ele na cadeia e esclarecesse os fatos ao juiz.
Por fim, apenas para constar: embora seja irrelevante, o réu é inocente e demorou dez anos para ser julgado porque os libelos que se seguiram continuaram contendo erros e, por isso, sendo anulados, e o Ministério Público não conseguia decidir exatamente qual era a acusação contra ele, terminando por requerer sua absolvição, que foi decretada pelos jurados em votação unânime.

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