Introdução ao Fédon de PlatãoNão assim os outros interlocutores, cujas dúvidas e objeções concorrem para que o diálogo atinja altitude metafísica e a personalidade de Sócrates se acentue soberanamente como dialética, como moralista e como asceta.
Cebes e Símias são, com efeito, os principais interlocutores. As suas intervenções sugerem que, apesar de jovens, deviam ocupar na roda dos socráticos uma situação de estima e de consideração intelectual; no entanto, só se sabe das suas pessoas e ideias o que Platão lhes atribui neste diálogo e no Fedro só relativamente a Símias, onde o apresenta a par de Fedro como homem habilíssimo em suscitar discussões —, o que aliás o Fédon corrobora, pois são algumas das suas objeções que mais frequentemente concorrem para que Sócrates esclareça e aprofunde metafisicamente o seu pensamento.
Dos discípulos famosos de Sócrates que não lhe assistiram no derradeiro transe sobressaem, principalmente, Platão e Aristipo. O primeiro, diz-se no Fédon, porque parece que estava doente; o segundo, porque constava que, como Cleômbroto, outro socrático, se deixara ficar em Egina. Como esta cidade era afamada pela vida de prazer que lá se levava, há quem tenha visto nesta justificação a irónica censura ao filósofo hedonista, que não quis trocar a alegria do viver fácil em Egina pela amargura da assistência a um espetáculo funéreo.
Se esta explicação é mera conjetura, não faltando quem lhe recuse, como Léon Robin, densidade e coerência, a explicação da ausência de Platão é ainda mais conjeturável. Basta a circunstância de ele dizer de si próprio, pela boca de Fédon, que não assistira por parecer que estava doente, para que o mais desprevenido dos leitores fique surpreso e intrigado. Se o autor do diálogo não sabe ao certo a razão que o impediu de assistir ao transe do homem que mais venerou e cuja memória exemplarmente remiu dos ultrajes, dos descréditos e das incompreensões que a conspurcavam, que pensar do significado real da sua obra e da objetividade da narração?
Quereria Platão dar a entender que lhe não eram imputáveis as possíveis inexatidões do relato? Quereria ir mais longe, sugerindo que a própria urdidura da narração era fictícia?
Todas as respostas são possíveis, por nenhuma poder edificar-se sobre alicerces sólidos e o problema geral da historicidade do Fédon dar margem a largas dúvidas, como adiante veremos.
Na narração, podem considerar-se as circunstâncias externas e a sucessão e encadeamento das ideias. Só estas importam ao nosso ponto de vista. Sigamos, pois, esquemática e sumariamente, os pontos capitais da conversação.
O diálogo começa por uma reflexão suscitada pela circunstância de Sócrates ter sido desagrilhoado, segue-se-lhe a reflexão, de ordem prática, sobre a atitude do homem perante a morte, para se elevar depois à fundamentação metafísica da imortalidade da alma.
Ao entrarem na prisão, os amigos do Filósofo encontram-no sentado no leito, com uma perna dobrada sobre a outra, coçando o vergão, certamente no artelho, causado pelo roçar da corrente de ferro de que momentos antes o haviam libertado os superintendentes do cárcere. Quer dizer: Sócrates estava sentindo prazer numa região do corpo que pouco antes o incomodava.
Ë neste episódio trivial, sentido por todos os que um dia experimentaram o prurido de um vergão, que radica o princípio da reflexão filosófica de Sócrates, mostrando Platão com tão insignificante origem do seu imperecível diálogo que o filosofar pode nascer a propósito das coisas mais rasteiras, e que ele consiste essencialmente em inquirir problemas e em desvendar o que está latente nas ideias e nas respetivas dimensões e correlações.
O facto simples, trivial, é que o prazer que Sócrates estava sentindo pressupunha a anterioridade imediata do seu contrário —, a dor. Daí o problema que dir-se-ia comandar mais ou menos explicitamente a marcha do diálogo: a vida da alma e o pensamento do sábio podem nutrir-se do prazer, isto é, de uma coisa cuja existência implica necessariamente a relação com a dor? Sócrates ensinara infatigavelmente e a toda a gente, de qualquer idade e condição, que o que é contraditório não tem acesso à verdade lógica, e a nosso ver é a aplicação desta norma do pensamento sadio à conceção da vida e à situação do homem no Mundo que conduz o diálogo e inspira a correlação que nele se estabelece entre a persistência das ideias, designadamente a de Bem, e a alma que as conhece. Vejamos como.
Depois de explicar as razões que o levaram a poetar no cárcere, Sócrates afirma sóbria e convictamente que quem for filósofo deve desejar segui-lo, e o mais brevemente possível, na jornada que ao cair da tarde irá empreender em cumprimento da sentença. A afirmação impressiona Símias e Cebes, cujas interrogações concorrem naturalmente para estabelecer o tema da morte como assunto da conversação.
Sócrates não começou por definir o que entendia por morte, embora no decurso do diálogo apareçam mais ou menos explicitamente algumas noções, que todas têm por denominador comum a separação da alma do corpo. Não armara uma justa dialética; raciocinava sobre a sua circunstância pessoal presente, estimulado pelas objeções de amigos, que aliavam à veneração pelo Homem o amor das ideias claras. Por isso a argumentação brota como que espontaneamente e corre com limpidez.
O primeiro problema que logicamente surge é o do suicídio, porque se a libertação da vida é um bem, ele não só é desejável como também lícito. A resposta de Sócrates às objeções de Símias e de Cebes assenta na opinião de que a filosofia é desejo da morte — veremos adiante em que sentido —, mas não justificação do suicídio, porque os seres humanos pertencem aos deuses e estão sob a sua tutela.
O suicídio é, pois, um ato ímpio, mas não pode dizer-se ao certo se o escrúpulo inibitório de Sócrates procedia dos mistérios órficos, se do Pitagorismo, se de outra crença hermética por igual reservada a iniciados.
Seja como for, o homem não deve dar-se a morte por ser pertença dos deuses; por consequência, observa Cebes, viver é preferível a morrer e o desejo de Sócrates de se libertar da vida assim como a recomendação aos filósofos para que lhe sigam o exemplo não parece terem fundamento razoável. A arguta objeção como que obriga Sócrates a justificar a sua opinião e a esclarecer a posição do filósofo perante a morte.
Daqui o segundo problema, que incide sobre a natureza e o objeto da Filosofia.
Sócrates reitera a convicção de que o trânsito da morte o levará para a companhia de deuses ainda mais sábios e justos que os deuses terrestres e de homens que alcançaram esta dita por terem vivido na Terra virtuosamente. O desejo de morrer é, pois, legítimo, mas cumpre que a razão também o justifique. A justificação implica naturalmente o sentido do que deve entender-se por desejo de morrer e por Filosofia.
O desejo de morrer é próprio do filósofo, porque em que consiste o filosofar senão em desprender a alma dos impulsos e atrações do corpo? Enquanto transeunte da Terra, o filósofo não consegue desembaraçar-se inteiramente da atração dos sentidos que alteram e deformam a verdade. Só a total libertação deles permite a pura contemplação da verdade, e por consequência, se estar morto é uma maneira de dizer que a alma se separou do corpo, a tarefa do filósofo nutre-se do desejo de morrer.
Cebes e Símias são, com efeito, os principais interlocutores. As suas intervenções sugerem que, apesar de jovens, deviam ocupar na roda dos socráticos uma situação de estima e de consideração intelectual; no entanto, só se sabe das suas pessoas e ideias o que Platão lhes atribui neste diálogo e no Fedro só relativamente a Símias, onde o apresenta a par de Fedro como homem habilíssimo em suscitar discussões —, o que aliás o Fédon corrobora, pois são algumas das suas objeções que mais frequentemente concorrem para que Sócrates esclareça e aprofunde metafisicamente o seu pensamento.
Dos discípulos famosos de Sócrates que não lhe assistiram no derradeiro transe sobressaem, principalmente, Platão e Aristipo. O primeiro, diz-se no Fédon, porque parece que estava doente; o segundo, porque constava que, como Cleômbroto, outro socrático, se deixara ficar em Egina. Como esta cidade era afamada pela vida de prazer que lá se levava, há quem tenha visto nesta justificação a irónica censura ao filósofo hedonista, que não quis trocar a alegria do viver fácil em Egina pela amargura da assistência a um espetáculo funéreo.
Se esta explicação é mera conjetura, não faltando quem lhe recuse, como Léon Robin, densidade e coerência, a explicação da ausência de Platão é ainda mais conjeturável. Basta a circunstância de ele dizer de si próprio, pela boca de Fédon, que não assistira por parecer que estava doente, para que o mais desprevenido dos leitores fique surpreso e intrigado. Se o autor do diálogo não sabe ao certo a razão que o impediu de assistir ao transe do homem que mais venerou e cuja memória exemplarmente remiu dos ultrajes, dos descréditos e das incompreensões que a conspurcavam, que pensar do significado real da sua obra e da objetividade da narração?
Quereria Platão dar a entender que lhe não eram imputáveis as possíveis inexatidões do relato? Quereria ir mais longe, sugerindo que a própria urdidura da narração era fictícia?
Todas as respostas são possíveis, por nenhuma poder edificar-se sobre alicerces sólidos e o problema geral da historicidade do Fédon dar margem a largas dúvidas, como adiante veremos.
Na narração, podem considerar-se as circunstâncias externas e a sucessão e encadeamento das ideias. Só estas importam ao nosso ponto de vista. Sigamos, pois, esquemática e sumariamente, os pontos capitais da conversação.
O diálogo começa por uma reflexão suscitada pela circunstância de Sócrates ter sido desagrilhoado, segue-se-lhe a reflexão, de ordem prática, sobre a atitude do homem perante a morte, para se elevar depois à fundamentação metafísica da imortalidade da alma.
Ao entrarem na prisão, os amigos do Filósofo encontram-no sentado no leito, com uma perna dobrada sobre a outra, coçando o vergão, certamente no artelho, causado pelo roçar da corrente de ferro de que momentos antes o haviam libertado os superintendentes do cárcere. Quer dizer: Sócrates estava sentindo prazer numa região do corpo que pouco antes o incomodava.
Ë neste episódio trivial, sentido por todos os que um dia experimentaram o prurido de um vergão, que radica o princípio da reflexão filosófica de Sócrates, mostrando Platão com tão insignificante origem do seu imperecível diálogo que o filosofar pode nascer a propósito das coisas mais rasteiras, e que ele consiste essencialmente em inquirir problemas e em desvendar o que está latente nas ideias e nas respetivas dimensões e correlações.
O facto simples, trivial, é que o prazer que Sócrates estava sentindo pressupunha a anterioridade imediata do seu contrário —, a dor. Daí o problema que dir-se-ia comandar mais ou menos explicitamente a marcha do diálogo: a vida da alma e o pensamento do sábio podem nutrir-se do prazer, isto é, de uma coisa cuja existência implica necessariamente a relação com a dor? Sócrates ensinara infatigavelmente e a toda a gente, de qualquer idade e condição, que o que é contraditório não tem acesso à verdade lógica, e a nosso ver é a aplicação desta norma do pensamento sadio à conceção da vida e à situação do homem no Mundo que conduz o diálogo e inspira a correlação que nele se estabelece entre a persistência das ideias, designadamente a de Bem, e a alma que as conhece. Vejamos como.
Depois de explicar as razões que o levaram a poetar no cárcere, Sócrates afirma sóbria e convictamente que quem for filósofo deve desejar segui-lo, e o mais brevemente possível, na jornada que ao cair da tarde irá empreender em cumprimento da sentença. A afirmação impressiona Símias e Cebes, cujas interrogações concorrem naturalmente para estabelecer o tema da morte como assunto da conversação.
Sócrates não começou por definir o que entendia por morte, embora no decurso do diálogo apareçam mais ou menos explicitamente algumas noções, que todas têm por denominador comum a separação da alma do corpo. Não armara uma justa dialética; raciocinava sobre a sua circunstância pessoal presente, estimulado pelas objeções de amigos, que aliavam à veneração pelo Homem o amor das ideias claras. Por isso a argumentação brota como que espontaneamente e corre com limpidez.
O primeiro problema que logicamente surge é o do suicídio, porque se a libertação da vida é um bem, ele não só é desejável como também lícito. A resposta de Sócrates às objeções de Símias e de Cebes assenta na opinião de que a filosofia é desejo da morte — veremos adiante em que sentido —, mas não justificação do suicídio, porque os seres humanos pertencem aos deuses e estão sob a sua tutela.
O suicídio é, pois, um ato ímpio, mas não pode dizer-se ao certo se o escrúpulo inibitório de Sócrates procedia dos mistérios órficos, se do Pitagorismo, se de outra crença hermética por igual reservada a iniciados.
Seja como for, o homem não deve dar-se a morte por ser pertença dos deuses; por consequência, observa Cebes, viver é preferível a morrer e o desejo de Sócrates de se libertar da vida assim como a recomendação aos filósofos para que lhe sigam o exemplo não parece terem fundamento razoável. A arguta objeção como que obriga Sócrates a justificar a sua opinião e a esclarecer a posição do filósofo perante a morte.
Daqui o segundo problema, que incide sobre a natureza e o objeto da Filosofia.
Sócrates reitera a convicção de que o trânsito da morte o levará para a companhia de deuses ainda mais sábios e justos que os deuses terrestres e de homens que alcançaram esta dita por terem vivido na Terra virtuosamente. O desejo de morrer é, pois, legítimo, mas cumpre que a razão também o justifique. A justificação implica naturalmente o sentido do que deve entender-se por desejo de morrer e por Filosofia.
O desejo de morrer é próprio do filósofo, porque em que consiste o filosofar senão em desprender a alma dos impulsos e atrações do corpo? Enquanto transeunte da Terra, o filósofo não consegue desembaraçar-se inteiramente da atração dos sentidos que alteram e deformam a verdade. Só a total libertação deles permite a pura contemplação da verdade, e por consequência, se estar morto é uma maneira de dizer que a alma se separou do corpo, a tarefa do filósofo nutre-se do desejo de morrer.
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Introdução ao Fédon de PlatãoNão assim os outros interlocutores, cujas dúvidas e objeções concorrem para que o diálogo atinja altitude metafísica e a personalidade de Sócrates se acentue soberanamente como dialética, como moralista e como asceta.
Cebes e Símias são, com efeito, os principais interlocutores. As suas intervenções sugerem que, apesar de jovens, deviam ocupar na roda dos socráticos uma situação de estima e de consideração intelectual; no entanto, só se sabe das suas pessoas e ideias o que Platão lhes atribui neste diálogo e no Fedro só relativamente a Símias, onde o apresenta a par de Fedro como homem habilíssimo em suscitar discussões —, o que aliás o Fédon corrobora, pois são algumas das suas objeções que mais frequentemente concorrem para que Sócrates esclareça e aprofunde metafisicamente o seu pensamento.
Dos discípulos famosos de Sócrates que não lhe assistiram no derradeiro transe sobressaem, principalmente, Platão e Aristipo. O primeiro, diz-se no Fédon, porque parece que estava doente; o segundo, porque constava que, como Cleômbroto, outro socrático, se deixara ficar em Egina. Como esta cidade era afamada pela vida de prazer que lá se levava, há quem tenha visto nesta justificação a irónica censura ao filósofo hedonista, que não quis trocar a alegria do viver fácil em Egina pela amargura da assistência a um espetáculo funéreo.
Se esta explicação é mera conjetura, não faltando quem lhe recuse, como Léon Robin, densidade e coerência, a explicação da ausência de Platão é ainda mais conjeturável. Basta a circunstância de ele dizer de si próprio, pela boca de Fédon, que não assistira por parecer que estava doente, para que o mais desprevenido dos leitores fique surpreso e intrigado. Se o autor do diálogo não sabe ao certo a razão que o impediu de assistir ao transe do homem que mais venerou e cuja memória exemplarmente remiu dos ultrajes, dos descréditos e das incompreensões que a conspurcavam, que pensar do significado real da sua obra e da objetividade da narração?
Quereria Platão dar a entender que lhe não eram imputáveis as possíveis inexatidões do relato? Quereria ir mais longe, sugerindo que a própria urdidura da narração era fictícia?
Todas as respostas são possíveis, por nenhuma poder edificar-se sobre alicerces sólidos e o problema geral da historicidade do Fédon dar margem a largas dúvidas, como adiante veremos.
Na narração, podem considerar-se as circunstâncias externas e a sucessão e encadeamento das ideias. Só estas importam ao nosso ponto de vista. Sigamos, pois, esquemática e sumariamente, os pontos capitais da conversação.
O diálogo começa por uma reflexão suscitada pela circunstância de Sócrates ter sido desagrilhoado, segue-se-lhe a reflexão, de ordem prática, sobre a atitude do homem perante a morte, para se elevar depois à fundamentação metafísica da imortalidade da alma.
Ao entrarem na prisão, os amigos do Filósofo encontram-no sentado no leito, com uma perna dobrada sobre a outra, coçando o vergão, certamente no artelho, causado pelo roçar da corrente de ferro de que momentos antes o haviam libertado os superintendentes do cárcere. Quer dizer: Sócrates estava sentindo prazer numa região do corpo que pouco antes o incomodava.
Ë neste episódio trivial, sentido por todos os que um dia experimentaram o prurido de um vergão, que radica o princípio da reflexão filosófica de Sócrates, mostrando Platão com tão insignificante origem do seu imperecível diálogo que o filosofar pode nascer a propósito das coisas mais rasteiras, e que ele consiste essencialmente em inquirir problemas e em desvendar o que está latente nas ideias e nas respetivas dimensões e correlações.
O facto simples, trivial, é que o prazer que Sócrates estava sentindo pressupunha a anterioridade imediata do seu contrário —, a dor. Daí o problema que dir-se-ia comandar mais ou menos explicitamente a marcha do diálogo: a vida da alma e o pensamento do sábio podem nutrir-se do prazer, isto é, de uma coisa cuja existência implica necessariamente a relação com a dor? Sócrates ensinara infatigavelmente e a toda a gente, de qualquer idade e condição, que o que é contraditório não tem acesso à verdade lógica, e a nosso ver é a aplicação desta norma do pensamento sadio à conceção da vida e à situação do homem no Mundo que conduz o diálogo e inspira a correlação que nele se estabelece entre a persistência das ideias, designadamente a de Bem, e a alma que as conhece. Vejamos como.
Depois de explicar as razões que o levaram a poetar no cárcere, Sócrates afirma sóbria e convictamente que quem for filósofo deve desejar segui-lo, e o mais brevemente possível, na jornada que ao cair da tarde irá empreender em cumprimento da sentença. A afirmação impressiona Símias e Cebes, cujas interrogações concorrem naturalmente para estabelecer o tema da morte como assunto da conversação.
Sócrates não começou por definir o que entendia por morte, embora no decurso do diálogo apareçam mais ou menos explicitamente algumas noções, que todas têm por denominador comum a separação da alma do corpo. Não armara uma justa dialética; raciocinava sobre a sua circunstância pessoal presente, estimulado pelas objeções de amigos, que aliavam à veneração pelo Homem o amor das ideias claras. Por isso a argumentação brota como que espontaneamente e corre com limpidez.
O primeiro problema que logicamente surge é o do suicídio, porque se a libertação da vida é um bem, ele não só é desejável como também lícito. A resposta de Sócrates às objeções de Símias e de Cebes assenta na opinião de que a filosofia é desejo da morte — veremos adiante em que sentido —, mas não justificação do suicídio, porque os seres humanos pertencem aos deuses e estão sob a sua tutela.
O suicídio é, pois, um ato ímpio, mas não pode dizer-se ao certo se o escrúpulo inibitório de Sócrates procedia dos mistérios órficos, se do Pitagorismo, se de outra crença hermética por igual reservada a iniciados.
Seja como for, o homem não deve dar-se a morte por ser pertença dos deuses; por consequência, observa Cebes, viver é preferível a morrer e o desejo de Sócrates de se libertar da vida assim como a recomendação aos filósofos para que lhe sigam o exemplo não parece terem fundamento razoável. A arguta objeção como que obriga Sócrates a justificar a sua opinião e a esclarecer a posição do filósofo perante a morte.
Daqui o segundo problema, que incide sobre a natureza e o objeto da Filosofia.
Sócrates reitera a convicção de que o trânsito da morte o levará para a companhia de deuses ainda mais sábios e justos que os deuses terrestres e de homens que alcançaram esta dita por terem vivido na Terra virtuosamente. O desejo de morrer é, pois, legítimo, mas cumpre que a razão também o justifique. A justificação implica naturalmente o sentido do que deve entender-se por desejo de morrer e por Filosofia.
O desejo de morrer é próprio do filósofo, porque em que consiste o filosofar senão em desprender a alma dos impulsos e atrações do corpo? Enquanto transeunte da Terra, o filósofo não consegue desembaraçar-se inteiramente da atração dos sentidos que alteram e deformam a verdade. Só a total libertação deles permite a pura contemplação da verdade, e por consequência, se estar morto é uma maneira de dizer que a alma se separou do corpo, a tarefa do filósofo nutre-se do desejo de morrer.
Cebes e Símias são, com efeito, os principais interlocutores. As suas intervenções sugerem que, apesar de jovens, deviam ocupar na roda dos socráticos uma situação de estima e de consideração intelectual; no entanto, só se sabe das suas pessoas e ideias o que Platão lhes atribui neste diálogo e no Fedro só relativamente a Símias, onde o apresenta a par de Fedro como homem habilíssimo em suscitar discussões —, o que aliás o Fédon corrobora, pois são algumas das suas objeções que mais frequentemente concorrem para que Sócrates esclareça e aprofunde metafisicamente o seu pensamento.
Dos discípulos famosos de Sócrates que não lhe assistiram no derradeiro transe sobressaem, principalmente, Platão e Aristipo. O primeiro, diz-se no Fédon, porque parece que estava doente; o segundo, porque constava que, como Cleômbroto, outro socrático, se deixara ficar em Egina. Como esta cidade era afamada pela vida de prazer que lá se levava, há quem tenha visto nesta justificação a irónica censura ao filósofo hedonista, que não quis trocar a alegria do viver fácil em Egina pela amargura da assistência a um espetáculo funéreo.
Se esta explicação é mera conjetura, não faltando quem lhe recuse, como Léon Robin, densidade e coerência, a explicação da ausência de Platão é ainda mais conjeturável. Basta a circunstância de ele dizer de si próprio, pela boca de Fédon, que não assistira por parecer que estava doente, para que o mais desprevenido dos leitores fique surpreso e intrigado. Se o autor do diálogo não sabe ao certo a razão que o impediu de assistir ao transe do homem que mais venerou e cuja memória exemplarmente remiu dos ultrajes, dos descréditos e das incompreensões que a conspurcavam, que pensar do significado real da sua obra e da objetividade da narração?
Quereria Platão dar a entender que lhe não eram imputáveis as possíveis inexatidões do relato? Quereria ir mais longe, sugerindo que a própria urdidura da narração era fictícia?
Todas as respostas são possíveis, por nenhuma poder edificar-se sobre alicerces sólidos e o problema geral da historicidade do Fédon dar margem a largas dúvidas, como adiante veremos.
Na narração, podem considerar-se as circunstâncias externas e a sucessão e encadeamento das ideias. Só estas importam ao nosso ponto de vista. Sigamos, pois, esquemática e sumariamente, os pontos capitais da conversação.
O diálogo começa por uma reflexão suscitada pela circunstância de Sócrates ter sido desagrilhoado, segue-se-lhe a reflexão, de ordem prática, sobre a atitude do homem perante a morte, para se elevar depois à fundamentação metafísica da imortalidade da alma.
Ao entrarem na prisão, os amigos do Filósofo encontram-no sentado no leito, com uma perna dobrada sobre a outra, coçando o vergão, certamente no artelho, causado pelo roçar da corrente de ferro de que momentos antes o haviam libertado os superintendentes do cárcere. Quer dizer: Sócrates estava sentindo prazer numa região do corpo que pouco antes o incomodava.
Ë neste episódio trivial, sentido por todos os que um dia experimentaram o prurido de um vergão, que radica o princípio da reflexão filosófica de Sócrates, mostrando Platão com tão insignificante origem do seu imperecível diálogo que o filosofar pode nascer a propósito das coisas mais rasteiras, e que ele consiste essencialmente em inquirir problemas e em desvendar o que está latente nas ideias e nas respetivas dimensões e correlações.
O facto simples, trivial, é que o prazer que Sócrates estava sentindo pressupunha a anterioridade imediata do seu contrário —, a dor. Daí o problema que dir-se-ia comandar mais ou menos explicitamente a marcha do diálogo: a vida da alma e o pensamento do sábio podem nutrir-se do prazer, isto é, de uma coisa cuja existência implica necessariamente a relação com a dor? Sócrates ensinara infatigavelmente e a toda a gente, de qualquer idade e condição, que o que é contraditório não tem acesso à verdade lógica, e a nosso ver é a aplicação desta norma do pensamento sadio à conceção da vida e à situação do homem no Mundo que conduz o diálogo e inspira a correlação que nele se estabelece entre a persistência das ideias, designadamente a de Bem, e a alma que as conhece. Vejamos como.
Depois de explicar as razões que o levaram a poetar no cárcere, Sócrates afirma sóbria e convictamente que quem for filósofo deve desejar segui-lo, e o mais brevemente possível, na jornada que ao cair da tarde irá empreender em cumprimento da sentença. A afirmação impressiona Símias e Cebes, cujas interrogações concorrem naturalmente para estabelecer o tema da morte como assunto da conversação.
Sócrates não começou por definir o que entendia por morte, embora no decurso do diálogo apareçam mais ou menos explicitamente algumas noções, que todas têm por denominador comum a separação da alma do corpo. Não armara uma justa dialética; raciocinava sobre a sua circunstância pessoal presente, estimulado pelas objeções de amigos, que aliavam à veneração pelo Homem o amor das ideias claras. Por isso a argumentação brota como que espontaneamente e corre com limpidez.
O primeiro problema que logicamente surge é o do suicídio, porque se a libertação da vida é um bem, ele não só é desejável como também lícito. A resposta de Sócrates às objeções de Símias e de Cebes assenta na opinião de que a filosofia é desejo da morte — veremos adiante em que sentido —, mas não justificação do suicídio, porque os seres humanos pertencem aos deuses e estão sob a sua tutela.
O suicídio é, pois, um ato ímpio, mas não pode dizer-se ao certo se o escrúpulo inibitório de Sócrates procedia dos mistérios órficos, se do Pitagorismo, se de outra crença hermética por igual reservada a iniciados.
Seja como for, o homem não deve dar-se a morte por ser pertença dos deuses; por consequência, observa Cebes, viver é preferível a morrer e o desejo de Sócrates de se libertar da vida assim como a recomendação aos filósofos para que lhe sigam o exemplo não parece terem fundamento razoável. A arguta objeção como que obriga Sócrates a justificar a sua opinião e a esclarecer a posição do filósofo perante a morte.
Daqui o segundo problema, que incide sobre a natureza e o objeto da Filosofia.
Sócrates reitera a convicção de que o trânsito da morte o levará para a companhia de deuses ainda mais sábios e justos que os deuses terrestres e de homens que alcançaram esta dita por terem vivido na Terra virtuosamente. O desejo de morrer é, pois, legítimo, mas cumpre que a razão também o justifique. A justificação implica naturalmente o sentido do que deve entender-se por desejo de morrer e por Filosofia.
O desejo de morrer é próprio do filósofo, porque em que consiste o filosofar senão em desprender a alma dos impulsos e atrações do corpo? Enquanto transeunte da Terra, o filósofo não consegue desembaraçar-se inteiramente da atração dos sentidos que alteram e deformam a verdade. Só a total libertação deles permite a pura contemplação da verdade, e por consequência, se estar morto é uma maneira de dizer que a alma se separou do corpo, a tarefa do filósofo nutre-se do desejo de morrer.
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