domingo, 30 de março de 2014
O suicídio-espetáculo na sociedade do espetáculo
“Suicidar é um ato inútil e insensato; destrói arbitrariamente o fenômeno individual, enquanto a coisa em si permanece intacta”
A. Schopenhauer[1]
Embora seja um tabu nas conversas do dia-a-dia, o suicídio tende a ser aceito como mais um direito do sujeito contemporâneo. Entretanto, na maioria das vezes, abreviar a própria vida não se trata de um ato sustentado no livre-arbítrio, mas sim em conflitos entre a consciência e o inconsciente, entre o sujeito e o grupo, a fé e a ciência, etc.
A partir da segunda metade do século 20, o suicídio tem sido também usado como uma manifestação política e religiosa, causando assim mais desespero e desesperança para o futuro da humanidade.
Dos casos de prática da eutanásia aos homens-bomba, a escolha da própria morte é um acontecimento crescente no mundo todo. Os ataques suicidas, antes noticiados como gesto de fanáticos, após o 11 de setembro de 2001, foram reconsiderados como um ato mais ou menos racional, e imprevisível.
O megaterrorismo deve ser visto também como um suicídio espetacular do sujeito, que é representante de uma cultura dentro de uma sociedade globalizada que faz do espetáculo a sua estética e ética de vida. Ou seja, o que importa nesse terrível ato é ganhar a visibilidade na mídia, não se importando veicular a idéia por meio da palavra, ou o argumento que o sujeito que pensa ser o portador de uma lógica ou de uma mensagem divina.
O suicídio de indivíduos sozinhos ou em grupo deixou de ser um ato puramente privativo para sê-lo em público, como se fosse um show, em nome de uma causa muitas vezes incompreensível, principalmente se esta é direcionada para ser decodificada pela cultura ocidental. O suicido terrorista, podendo acontecer em qualquer parte do mundo e a qualquer momento, mina qualquer forma de segurança preventiva, visto que não existe meio para contê-lo. O ator do gesto suicida atua como se fosse personagem de uma tragédia, como que uma lei acima dele o empurra para o ato final. “É a vitória da pulsão de morte, o triunfo do ódio e do sadismo. Também é o preço muito caro, sempre pago para sustentar inconscientemente uma posição de domínio, na alienação mais radical, pois o sujeito está até mesmo prestes a pagá-la com sua vida” (Chemama, 1995, p.10).
A cultura norte-americana, historicamente violenta, soube projetar nos filmes homicídios e suicídios estetizados, porém, nas últimas décadas está sendo vítima de sua própria violência fabricada pelos meios virtuais, e também pelo estilo de vida que espalha pelo mundo. O suicida-terrorista é atingido por signos e termina também aspirando ter seus 30 segundos de glória macabra nas telas do noticiário da televisão, que ele não pode mais ver, mas pode gozar por antecipação, e, a mídia não tem como evitar.
O gozo de destruir se destruindo é crescente no mundo. E não é produto unicamente de uma determinada cultura religiosa que produz terroristas em série. O suicídio sempre esteve presente na cultura humana. Faltam, porém, reflexões mais profundas, estudos interdisciplinares, além de medidas preventivas mais efetivas, visto que hoje já podemos falar de banalização do suicídio. Antes de 11/9, os homens-bombas que atuavam contra a ocupação israelense tinham se banalizado, eram apenas um efeito local, porém, depois do internacionalismo da Al Qaeda e da ocupação do Iraque encabeçada pela EUA, a prática do suicídio-homicídio promete ser crescente e de proporções inimagináveis no mundo todo.
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Albert Camus (s.d.) escreveu numa época de pessimismo pós-guerra, que só há um problema verdadeiramente filosófico sério: o suicídio. Ou seja, julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia, dizia o existencialista. Se Camus vivesse os nossos dias teria ampliado sua observação, visto que o suicídio cada vez mais é usado para fins políticos[2], religiosos, e existenciais, para abreviar mais uma vida que perde o sentido, comumente aceito como valor maior[3].
Em nossa época, o gesto suicida ocupa uma posição limítrofe, entre a política e os interesses do Eu, entre a ciência e a fé, entre a tradição e a modernidade, entre a aceitação da natural conservação de si e a falta de sentido de existir. Como o sujeito de nossa época não mais acredita na idéia de revolução, deixa-se levar pelos ventos da paixão mística ou niilista, usando a morte do próprio corpo para expressar sua revolta contra um mundo sem coração. Morre o corpo para viver o transcendente. E, os terroristas islâmicos estão na vanguarda desse movimento irracionalista porque escolheram o suicídio como gesto político de sacrifício por uma causa difusa entre o misticismo, a política, a estética e a ética tribal e tradicionalista. O suicídio do terror despreza a vida terrena de si e dos outros, em nome de uma causa mais voltada para a vida dos céus do que a vida da terra. Os ataques suicidas de 11/9 ou de tantos outros que ocorrem na Palestina, no Paquistão, Índia, Chechênia, ou no Iraque não escolhem vítimas. Crianças, mulheres, velhos, civis, militares e homens de governo, empresas, ongs humanitárias, ONU, todos são como que merecedores de morrer e sofrer junto com o suicida.
O suicídio político-religioso da era contemporânea pode até ser criticado como um gesto movido unicamente pela e paixão e fanatismo, porém não pode ser negado, nele, a sua racionalidade, premeditação e cálculo, tanto para causar destruição e impacto no inimigo como também causar visibilidade no mundo, aproveitando-se sempre de uma mídia sedenta de audiência a qualquer preço. Mesmo sendo um ato político que ataca os símbolos do capitalismo ianque, ou da vida ocidentalizada de Israel ou da democracia da Espanha[4], o terrorismo-suicida contemporâneo não é inspirado em uma doutrina de esquerda socialista, nem tem aspiração à democracia pluralista. Pelo contrário. Conforme Rounaet (2001), “são agentes de uma ideologia religiosa de extrema direita, que apaga as fronteiras de classe e nesse sentido funciona como ópio do povo, na mais pura acepção marxista"[5]. O terrorismo-suicida contemporâneo também não deve ser confundido como um movimento de guerrilha, visto que esta [a guerrilha] tende a ser laica, racional, não usa os seus militantes para fins suicidas, e desenvolve uma estratégia de luta visando o poder e não apenas a destruição. As características dos “insurgentes” no Iraque de hoje deve ser considerada mais para um movimento de guerrilha do que de terrorismo.
O suicídio, evidentemente, tem várias motivos: político, amoroso, financeiro, sentimento de culpa ou remorso, doença fatal, reprovação sócio-cultural, um meio de expressar uma causa mítica ou religiosa, etc. Pode ser um gesto individual ou coletivo, de livre-arbítrio ou influenciado por uma causa, líder carismático ou grupo. O suicídio tem sido usado com freqüência por ser uma arma de guerra de baixo custo, e causar grandes danos materiais e efeito moral do inimigo poderoso que está mais preparado para uma guerra convencional.
A ideologia patriótica que tradicionalmente estimulava "morrer pela pátria" presente nas letras dos hinos nacionais, vem sendo cumprida literalmente pelas "ongs" terroristas como resposta desesperada contra uma ordem pervertida da economia, da estética e da ética no mundo contemporâneo. Vandré, na sua canção “Pra não dizer que não falei de flores”, mais conhecida por “Caminhando...”, naquela época (anos 70), cuja luta era contra a ditadura militar, ironizava o princípio de “morrer pela pátria e viver sem razão”. O suicídio político e religioso pode ser interpretado como uma reação desesperada contra um poder imperial – militar e/ou cultural – invasor, que não respeita a cultura, nem a identidade de cada povo. Assim, é preferível morrer do que entregar a alma para eles e viver sem razão...
Uma “morte gloriosa” na história
A prática de autoflagelação pré-suicida vista nas manifestações públicas do Irã, a partir da chegada ao poder da teocracia xiita que atemoriza o ocidente, era comumente aceita pela cultura cristã. Não só no período da chamada Igreja primitiva, e das cruzadas, como até o século 20, suicídios coletivos[6] foram comandados por seitas neocristãs. Desde a Idade Média, a interpretação movida pela fé cristã fazia do sofrimento e da dor um significado redentor. O martírio fundado na fé religiosa não era considerado um suicídio em si, mas um bom gesto de negação material e a conseqüente supervalorização da alma em ascese. Acreditava-se que não era o sujeito que escolhia tal ato, mas este era instrumento do desejo divino ou das circunstâncias que o colocava em teste para com a divindade. No período das cruzadas, os cristãos fervorosos comumente faziam penitências, autoflagelação, martírios de todo tipo, e iam para a guerra quase que se oferecendo para morrer, tudo sustentado pela crença de obtenção de uma vida melhor pós-morte. Os judeus de Massada, também praticaram suicídio coletivo para não serem capturados por seus inimigos, escapando assim da degradação, tortura, assassinado e abjuração de sua fé, além de buscarem com esse gesto uma vida após a morte[7] etc.
Nos estudos multidisciplinares sobre o suicídio não se pode desconsiderar o peso da forte convicção mística ou religiosa de uma vida após a morte. (Um paradoxo tido como “verdade” somente por aqueles que acreditam na existência do além). Muitos suicidas escolhem abreviar sua própria vida na esperança de tê-la novamente em “outra vida”, melhor e menos sofrida. No fundo, “o suicida quer a vida; não está descontente senão das contradições em que a vida se lhe oferece”, escreve Schopenhauer (s.d., p. 167).
Por outro lado, o conceito de suicídio honroso ou suicídio como forma de luta, teria surgido no Japão, através do código de ética samurai. Na 2a. Guerra Mundial, o Japão recrutava e treinava secretamente kamikazes ("vento dos deuses", em japonês) para pilotar e lançar o avião de guerra ou barco, sobre os navios inimigos, no caso eram, os norte-americanos. Consta que a ação mais ousada dos kamikazes aconteceu em 25 de outubro de 1944, quando o almirante Te Aima, lançou um ataque de grandes proporções contra a Força Tarefa 38 dos EUA, do almirante Mitscher, arrasando a esquadra que patrulhava águas filipinas. Foram usados mais de 2 mil aviões em batalha. Ao todo 2.198 pilotos morreram por devoção ao imperador, tido como um deus pelo povo japonês. Informações divulgadas pelo governo americano dão conta de 34 navios foram afundados e 288 danificados com os ataques kamikazes[8].
A morte auto-infligida em combate, portanto, era um recurso extremo que condizia com a tradicional cultura-moral samurai que a valorizava e, por conseguinte, era considerada honrosa e divina pelos pilotos suicidas japoneses[9]. Já o harakiri, mais conhecido como seppuku no Japão, era um antigo ritual suicida de extirpação das entranhas. No seppuku, o suicida, posicionado em ritual, corta seu abdome com uma faca ou espada pequena, da esquerda para a direita. Região essa que tem um significado especial. Segundo a crença dos antigos japoneses é nesse lugar que se encontra a alma humana. No início da era feudal, esse tipo de suicídio foi se ritualizando e, durante o Período Edo (1600-1868), tornou-se uma das cinco categorias de punição dos malfeitores entre a classe dos samurais. Era uma maneira de morrer preservando a honra. O seppuku ficou inalterado na revisão do código penal japonês promulgado em 1873, mas o nacionalismo do Período Miji (1868-1912) contribuiu para a perpetuação da prática, não de forma oficial mas sim como um método corajoso e digno de dar fim à própria vida[10].
No início do século 21, quando o Japão passa por uma crise econômica, faz desencadear uma nova onda de suicídios que preocupa o governo japonês que gastou 2,7 milhões em programas de prevenção ao suicídio. Em 2002 o orçamento para tais programas chega a 4,5 milhões. Comparando o número de suicídios entre 1998 e 2002, houve um alarmante aumento de 50%. Ou seja, mais de 30 mil casos de suicídios, anualmente. Segundo uma pesquisa, os japoneses que mais buscam o suicídio são homens entre 40 e 60 anos de idade, que perderam seus empregos e a perspectiva de prosseguir a carreira profissional; os idosos escolhem o suicídio para evitar serem "pesos" para suas famílias, e os adolescentes escolhem morrer a contar aos pais que foram reprovados nos exames escolares[11]. Observa-se que os suicídios dos japoneses obedecem em parte à tradição cultura e moral, ou seja, cumprem mais ou menos o ritual samurai, é reservado, e foge da encenação de espetáculo geralmente praticada pelo suicídio político-religioso.
No período da guerra do Vietnã, quando os EUA, chegaram a sustentar mais de 500 mil homens lutando na Indochina, principalmente no território vietnamita, tornou-se freqüente ocorrerem suicídios de monges budistas, em protesto contra a guerra que se alongava sem perspectiva de terminar. É comovente a descrição do fato ocorrido no centro da cidade de Saigon (hoje, Ho Chi Minh) feito por um jornalista e documentado em fotos: "os monges formam um círculo em torno de um deles, já idoso, que senta-se numa almofada e cruza as pernas. Dois desses monges despejam gasolina no crânio raspado e no manto amarelo de monge idoso. Logo, esse monge arde em chamas, em posição de lótus, impassível".
Atear fogo às próprias roupas também ocorreu com jovens que protestavam contraa invasão dos tanques soviéticos em Praga em 1968. Alexander Dubcek, embora primeiro-secretário do Partido Comunista da Tchecoslováquia ao chegar ao posto mais importante do governo do país correspondente ao de primeiro-ministro, procurou guiar a Tchecoslováquia para o ocidente democrático, a liberdade de expressão, e rompendo com o isolamento em que seu país tinha caído. Considerado ousado demais, Dubcek encantou o povo tcheco, recebendo adesão dos intelectuais e dos universitários, mas foi considerado “perigoso” e “excessivamente independente” pelo governo soviético. Atear fogo às próprias roupas, portanto, não deixava de ser um gesto de protesto político que usava a mídia para divulgar fotos e filmes das cenas reais de desespero e altruísmo. Talvez o suicídio espetáculo tenha surgido nesse momento na Tchecoslováquia e não com os monges budistas no Vietnã que, embora fosse um ato público, era um gesto manso e sem intenção midiática.
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Influenciados pela tática kamikase dos japoneses, o conceito de "morte gloriosa", do "suicídio como tática de luta" ou "o suicídio por uma causa", teria ressurgido entre os grupos palestinos, e fundamentalistas islâmicos, como forma extrema de protesto por se sentirem alijados do direito de também ter o seu próprio estado [palestino], após a criação do Estado de Israel. O khomeinismo extremista também produziu o movimento dos "bassidjis", jovens voluntários que morriam na guerra contra o Iraque. Nesse período, o mundo ficaria sabendo através do noticiário que homens-bomba eram doutrinados e treinados para se lançarem em carros-bomba contra alvos norte-americanos e israelenses. A escalada do terrorismo suicida internacional parece ter chegado ao seu clímax – pelo menos por enquanto – , no dia 11 de setembro de 2001, quando aviões de passageiros foram usados como bombas para atacar às duas torres gêmeas americanas.
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Existemalgumas diferenças entre o suicídio de inspiração islâmica e o suicídio budismo vietnamita. Embora ambos aspiram causar impacto no adversário, o suicídio de inspiração budista o monge vietnamita morria silencioso, manso, introspectivo e não levava mais ninguém com ele para a morte. Já o suicida islâmico doutrinado na ideologia da "guerra santa ou Jihad", é histérico, ruidoso, furioso, catastrófico, e assassino coletivo sem limites. Portanto, ambos usam o suicídio como forma de luta, mas se distinguem no estilo e no efeito de seu gesto, ou seja, enquanto o budista com silêncio conseguiu comover a opinião pública mundial, o segundo – o terrorista-suicida islâmico – até o momento só consegue aterrorizar a opinião pública mundial[12]. Estrategicamente, o suicídio do terror tem se provado ineficaz como forma de luta “racional” e “positiva” na época contemporânea. Existe até o argumento de que Osama Bin Laden foi o principal cabo eleitoral de G. W. Bush, que, após o 11/9, passou a ter um projeto político internacional unilateralista, e internamente camuflou a mediocridade do seu governo conservador. No caso de Israel, idem. Após o atentado aos trens de Madrid, o terror fez mudar a opção do povo por um candidato não beligerante e não alinhado automático dos EUA.
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Ao que pudemos apurar até o momento, o suicida islâmico embora no início não acredite que sua morte poderá ocorrer através do atentado terrorista, a doutrinação fundamentalista o leva a acreditar nos privilégios do paraíso para os mártires da Jihad – a crença na "guerra santa" contra os infiéis[13] - , além de receber a garantia dos grupos organizados para sua família não passar necessidade, ou algum tipo de benefício material, honras de herói-e-mártir, etc. Um ex-terrorista revela sobre esses privilégios depois da morte:
"Falaram-me que o martírio levaria suas famílias para o paraíso, que iria casar com 72 mulheres virgens. Lá no céu, o mártir estará com pessoas pias e com os profetas. E Deus perdoará seus pecados (...). Eles me convenceram dessa verdade. Também disseram que eu ganharia algum dinheiro, uns 6 mil dólares para morrer na explosão. Depois que morremos, nossa família recebe o dinheiro, pois sabemos que nossa família vive em más condições. Disseram-me também que a família e os amigos iam para o paraíso se eu fizesse um ato de martírio" [14].
Embora alguns teólogos[15] islâmicos rejeitam a tese de que a religião islâmica garante certos privilégios no paraíso, para os fundamentalistas, em particular para os mártires da Jihad, existe a crença fanática baseada numa interpretação distorcida do Alcorão de que sua morte será recompensada no céu e na terra.
O ponto de vista estritamente psicológico entende que esse tipo de suicídio, mesmo isento de intenção sádica, visa obter um certo gozo fundado no delírio psicótico ou parafrênico. A combinação letal do suicídio e terrorismo pode ser analisada como decorrente de um pathos (paixão) mais religioso do que político. Os ataques suicidas podem ser interpretados também como um retrocesso na civilização que possui outros meios políticos mais eficazes e menos letais de luta. Tais atos lembram os movimentos primitivos de reação contra a exploração capitalista (ex: Comuna de Paris), isto é, quando a organização política ainda não tinha sido inventada a massa raivosa quebrava e queimava tudo que encontrava pela frente. Sendo um gesto irracional e brutal, os ataques suicidas apenas usam a explosão como argumento. Os vídeos de Bin Laden não trazem nenhum argumento favorável a sua causa; mostram-no apenas fazendo pregação religiosa[16] onde sua palavra é passada como revelação divina. Não existe projeto político ou pauta de reivindicação minimamente elaborada pela organização Al Qaeda.
Concluindo...
A radicalidade do gesto e a diversidade de motivos que levam uma pessoa ou grupo ato suicida são suficientes para nos impor prudência de raciocínio e modéstia em qualquer reflexão e debate. Portanto, esse artigo não tem pretensão de analisar com profundidade o problema do suicídio, mesmo o suicídio de fundo político e religioso. Nossa intenção foi apenas ‘mostrar’ que na sociedade do espetáculo até a escolha da própria morte pode ser também um espetáculo. Precisamos inventar um método científico para melhor compreender esse novo tipo de suicídio.
Os poetas costumam ser os que primeiro ousam compreender as coisas “demasiadamente humanas”.Fernando Pessoa, além de compreender algumas coisas humanas, faz um importante alerta preventivo aos suicidas potenciais. Diz o poeta:
"[Depois do ato suicida, quando estiveres] verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas.../ Só és lembrado em duas datas, aniversariamente: quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste,/ Mais nada, mais nada, absolutamente nada./ Duas vezes por ano pensam em ti./ Duas vezes por ano suspiram por ti os que te amaram,/ E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala de ti./ Encara-te a frio, e encara a frio o que somos.../ Se queres matar-se, mata-te.../ [Se pensas que és importante?] És importante para ti, porque é a ti que te sentes/...E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?/ [17] [grifo nosso].
Através de seu heterônomo Álvaro Campos, o grande poeta português ainda faz um convite: devemos transformar os momentos de desespero (trágico), não em ato suicida, mas sim em arte poética. Tal como ele próprio realizou através de sua poesia, propõe que transformemos os normais momentos trágicos em drama[18], conquistando assim um jeito de levar a existência de modo mais criativo. Em “Bicarbonato de soda” ele se pergunta para em seguida responder:
Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir...[19]
[1] Schopenhauer, A. “O suicídio” . In : O mundo como vontade e representação, s.d., p. 168.
[2] O suicídio de Getúlio Vargas em 1954 pode ser considerado “político”, e também “narcísista”, pois o estadista aspirava, com seu gesto, atingir os inimigos com remorso e entrar para a história. Salvador Allende, em 1973, acuado no Palácio de La Moneda, cercado por tropas, tanques e bombardeio aéreo, preferiu dar um tiro na cabeça a se entregar para os inimigos da democracia. O suicídio de Sócrates, embora filosófico, parece ter sido uma forma de denunciar a decadência da política no mundo grego antigo. Suicídio de Hitler e de Goering também teve intenção política, para não ser julgado pelos soviéticos ou pelo Tribunal Internacional de Nuremberg.
[3] Schopenhauer (s.d.) considera que o “valor maior” da vida é a “vontade de querer viver”. A primeira tendência do indivíduo é a conservação de si...” (p. 89).
[4] O terrorismo que ocorre na Espanha, geralmente atribuído ao ETA, não é suicida. O terrorismo que também ocorreu na Irlanda do Norte, México, Peru, Colômbia, não usam o suicídio. O terrorismo-suicida parece ter implicação num segmento extremista da cultura islâmica.
[5] “A coroa e a estrela” (Folha de S.Paulo-Mais!, 18/11/2001). Também o professor da UFRGS, Luis Milman, no interessante artigo “Origem dos movimentos islâmicos revolucionários”, chega a identificar a simpatia dos nacionalistas árabes pelo nazifascismo no período em que esta era a principal força política na Europa, e que ambos aspiravam derrotar o imperialismo anglo-francês. Observa que o fundamentalismo islâmico não é um fenômeno novo. “O fundamentalismo político desenvolveu-se desde 1928, com a criação da A Irmandade Muçulmana (Al Ikhwan al-Muslimun) por Hasan Al Bana e meia dúzia de estudantes, no Cairo. Seu arcabouço doutrinário pode ser resumido em alguns pontos: rejeição ao colonialismo e aos valores ocidentais, retorno à pureza do Islã, sacrifício extremo pela causa, assistencialismo islâmico, tomada do poder político por meios revolucionários, refundação do califado unificado no mundo muçulmano, sob a autoridade exclusiva do Corão e abolição de todas as instituições implantadas no mundo islâmico pelo Ocidente, com a conseqüente extinção dos estados árabes tais como existem, além da eliminação de Israel” (grifo nosso).
[6] Em 1978, Na Guiana, 912 pessoas cometeram suicídio e também foram assassinadas sob ordens do pastor cristão Jin Jones, do Templo do Povo. Em 1993, em Waco, Texas, 64 membros da seita neocristã Ramo Davidiano também cometeram suicídio coletivo, após ter a casa invadida por forças policiais. No ano seguinte, Jo Di Mambro, da Ordem do Templo Solar, comandou “a passagem para o planeta Sirius” de 53 pessoas. Em 1997, na Califórnia, EUA, foram encontrados 39 corpos decorrentes de ritual suicida da seita Higher Source (Fonte Superior). Levantamento feito indicava que essas pessoas acreditavam seu gesto era imprescindível para encontrar um objeto voador não-identificado que os esperava atrás do cometa Hale-Bopp e os levaria a outro planeta, onde viveriam numa civilização superior à humana.
[7] Nota: dados colhidos de Cassorla, R. em prefácio ao livro de Toledo, J. Dicionário de suicidas ilustres. São Paulo: Record, 1999, p. 11-12.
[8] Cf.: Folha de S.Paulo. Cad. Mundo, 06/ 04/ 1997.
[9] A teoria que liga automaticamente a cultura ao ato suicida, não parece se aplicar ao Brasil, país de tradição cultural cristã católica e pacifista. Suicídios no Brasil são freqüentes, embora seus índices são considerados normais em relação ao mundo. Um suicídio "precursor" aos ataques de 11 de setembro de 2001, em Nova York, ocorreu no Brasil, há 13 anos, quando um maranhense, desempregado, Raimundo Nonato Alves da Conceição, num vôo Belo-Horizonte - Rio de Janeiro, apontou uma arma na cabeça do comandante e queria que ele jogasse o avião sobre o Palácio do Planalto, para matar o então presidente José Sarney. Apesar de ser seqüestrador, esse crime não caracterizou terrorismo, também Raimundo não reivindicava causa alguma; era movido apenas pelo desespero de desempregado e ódio vingativo a aquele que acreditava ser o causador de sua desgraça. O sequestrador terminou morto e foram salvos todos os passageiros e tripulantes.
[10] Cf.: FERREIRA, A. Morte pela honra. rev. Made in Japan, Ano 2, n. 20.
[11] rev. Época, jun/ 2002, p. 62.
[12] A reação contra o terror-suicida começou a ocorrer após o massacre de crianças na escola de Beslan, Rússia, inclusive pessoas que tradicionalmente era favorável ou se calava contra essa forma de luta, com coragem veio a público manifestar contra esse tipo de barbárie.
[13] "Jihad", significa literalmente "esforço" na causa de Deus (Allah), para difusão e proteção do islamismo. Ficou caracterizado como "guerra santa" na imprensa. Segundo o Prof. Mateus Soares Azevedo (Mestre em História das Religiões, da USP), a Jihad "exclui, por exemplo, a luta por causa mundana. Se seu objetivo é a obtenção de riquezas, a glória pessoal ou o ódio contra outro povo, não é Jihad". ( Folha de S. Paulo, Cad. “Todos os mundos do Islã”. p. A - 11, 23/09/2001). Também, cita-se o dito do profeta Muhammad: "A tinta do sábio vale mais que o sangue do mártir". (Ibid., p. A - 6).
[14] Cf.: Documentário "A mente do terrorista". Canal GNT, acesso em 2000-1.
[15] Tahar Benjelloun, escritor marroquino radicado na França, diz que "...no Alcorão não há um único versículo que justifique o assassinato ou suicídio. São todos claramente proibidos e punidos pela religião muçulmana." (Entrevista a J. Batista Natali, Folha de S. Paulo, Cad. Esp. Todos os mundos do Islã. p. A - 8, 23/09/2001). Está escrito no Alcorão, no tópico Surah-na-Nisaa 4: 29 -30: "Oh, vocês que crêem! (...) não se matem, porque verdadeiramente Alá tem sido com vocês mais misericordioso, se qualquer um fizer isso, com rancor ou injustiça, devemos logo castigá-lo com fogo". Mas, os extremistas islâmicos se sustentam em outra parte do mesmo livro sagrado para justificar os atentados, dizendo que lutar pela opressão é recomendável. "E por que não lutar pela causa de Alá e daqueles que, sendo fracos, são maltratados e oprimidos? Homens, mulheres e crianças cujo clamor é: 'Senhor! Salve-nos desta terra onde há opressores! E faça levantar para nós aqueles que vão nos proteger e nos socorrer'". (Surah-na-Nisaa 4: 75). Apud rev. Isto É, n. 1663 / 15/8/ 2001, p. 89). Jason Burke, que publicou recentemente no Reino Unido o livro “Äl Queda”, em entrevista, diz que “a maior parte das pessoas do mundo islâmico não gosta do terrorismo, tem vergonha e acha que a religião deles tem sido usada de forma errada” (“Ocidente não entende Al Qaeda, diz analista”. In: Folha de S. Paulo, 03/10/2004).
[16] Apesar dessa na eloqüência do ato terrorista de 11 de setembro de 2001, por não trazer a assinatura da autoria do atentado, Osama Bin Laden, precisou usar da mídia para divulgar seu discurso. Nota-se que era um discurso mais político que religioso; um monólogo que como tal recusava o diálogo ou discussão quanto à tática terrorista.
[17] PESSOA, F. O Eu profundo e os outros Eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
[18] Essa idéia, acima, devo ao psicanalista Jorge Fortes (1996). Segundo Forbes, a dimensão dramática da experiência psicanalítica - através da palavra, da escuta e da interpretação- pode levar o sujeito com intenção suicida a romper com o “destino trágico” que tem o poder de lhe impor buscar a morte como pronta solução de seus problemas. “No drama a lei é conhecida...O drama é da dimensão política”. Já “na tragédia a ação é o cumprimento de um destino, que estava escrito desde o início”. O drama põe o protagonista como sujeito-político-ativo, um sujeito que pode resolver o problema e vencê-lo, enquanto que na tragédia cabe ao herói cumprir o destino. Portanto, depreende-se que a opção pelo drama inaugura-se um sujeito autônomo e saudável, enquanto que o indivíduo refém do que “está escrito” da tragédia ou dos acontecimentos trágicos ainda vive um estágio de pré-sujeito. (Para aprofundar a distinção entre “trágico” e “tragédia” sugiro ver: MOST, G. W. “Da tragédia ao trágico”. In: Filosofia e literatura: o trágico na Filosofia Política. V. 3/ 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 20-35).
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