domingo, 16 de março de 2014
O depoimento de um menor
Os políticos, técnicos, diretores de instituições, cientistas, enfim adultos, em geral, costumam falar muito em nome e no lugar dos menores. Quais são as vozes deles sem intermediários, sobretudo quando estiveram internados numa instituição como as FEBEMs, durante (quase) toda a vida? Uma destas vozes é a de Paulo Collen que se tornou conhecido recentemente por ter escrito e publicado um livro-depoimento, Mais que a Realidade (Editora Cortez). Ele tem 19 anos, está empregado em uma empresa de processamento de dados, em São Paulo, estuda no 2° grau do Colégio Santa Marcelina (onde ganhou uma bolsa de estudo), mora em uma pensão no bairro de Campos Elíseos e continua freqüentando os seus amigos na Praça da Sé. Ali marcamos encontro com ele e registramos o seguinte depoimento:
"Quando eu tinha 3 meses de idade, minha mãe foi me dar para uma mulher da favela em Diadema que também não podia cuidar de mim. Aí fui para uma instituição da vida chamada FEBEM. Estudei até a 5ª série.
Mal aprendi a ler e escrever e só isso. Na classe, tinha juntas crianças alfabetizadas e não-alfabetizadas. Elas faziam bagunça e a gente não aprendia nada.
O problema da FEBEM são os funcionários
Como a FEBEM é 'sim, senhor!', 'cala a boca!', 'mão para trás! , então eu não acredito em FEBEM. FEBEM é um cabide de emprego. O funcionário, quando não é paternalista, é sádico. Uns acham que a gente é coitadinho, outros acham que a gente é monstro. Quando eu vejo que eu não quero que as pessoas me vejam como um coitadinho ou um bandido, porque eu sou fruto de um sistema capitalista, injusto, selvagem que me faz existir, morar na FEBEM ou me fazer roubar. É importante que a FEBEM tenha funcionários que tenham passado por uma seleção, mas ela não tem seleção e nem tem preparação para trabalhar com a gente.
Eu me lembro que quando estava na FEBEM eu perguntava para um funcionário: é tóxico ou tóchico? Ele respondia: 'não sei' e perguntava para outro funcionário. Nenhum dos dois sabia. Esses funcionários não tinham nada para passar para a gente. O problema da FEBEM não são os meninos, são os funcionários. Se colocar funcionários legais, as crianças vão sair de lá preparadas pelo menos para enfrentar um emprego.
Eu vou lutar a vida inteira para que acabem com a FEBEM, para que acabem com todas as instituições desse tipo. Seria bom que todo pai e toda mãe pudesse criar seu filho, ter a sua casa e não precisasse colocar em instituições. Enquanto isso não muda e essa mudança não é feita de um dia para outro, acho que precisa estruturar a FEBEM. Os políticos não estão interessados nisso. Eles ganham as eleições e só estão interessados em montar os projetos deles.O projeto que foi feito no governo do outro, que não está legal ainda e precisa estruturar, ele nem liga. Para começar a mudar, é preciso se unir e chegar num objetivo só que é o menor.
Quem não sabe gastar dinheiro?
De todas as instituições eu vejo o lado negativo e o positivo. De todas dá para absorver alguma coisa boa por mais ruim que seja. Só que é muito pequena em relação ao que é o dinheiro gasto, esbanjado. De uma instituição como a Escola Oficina, o dinheiro gasto até hoje se fosse dividir com os alunos da Escola Oficina, todos teriam apartamento. É um absurdo esse gasto de verba. Cada criança da FEBEM está gastando mais de 20 mil cruzados por mês (fevereiro de 88). Pega esse dinheiro e dá para a família do menor. A presidente da FEBEM disse para mim que o menor não vai saber administrar o dinheiro. E uma desculpa. Eu falei: olha, arruma um grupo de técnicos para trabalhar junto com a família ajudando a administrar esse dinheiro. Não querem fazer isso porque quem tem 3 crianças irmãs na FEBEM, aí dá 60 pau para essa família. Vai surgir muita mãe fazendo o filho roubar para ir para a FEBEM. Então é uma coisa muito complexa.
Eu sempre digo que a melhor coisa que fiz na minha vida foi ter fugido da FEBEM. Fiquei lá até os 13 anos. Porque se estivesse na FEBEM até hoje, eu teria três alternativas: ia ser bandido porque a FEBEM não teria me dado preparação para estar enfrentando um emprego e teria que roubar porque ninguém dá nada, podendo ir parar na penitenciária. Ou ia pedir esmola, ia ser mendigo se não tivesse peito para enfrentar ser bandido, apanhar da polícia. Ou, então, ia ser presunto como o Pixote e milhares de crianças que morrem nas mãos da polícia: ia acabar num cemitério da vida.
Vim morar na rua e foi na rua que aprendi uma coisa muito bonita na minha vida: eu aprendi igualdade. Quando a gente tinha comida, coberta, a gente dividia tudo. Ia dormir no 'ventinho' (da Praça da Sé) e um ajudava o outro. Se um cara que a gente não conhecesse fosse bater num amigo da gente e a gente visse, a gente não deixava bater. Nós fizemos uma família aqui: mais de 200 meninos. Às vezes, a gente era agressivo até mesmo com o nosso amigo porque é a lei da sobrevivência.
Por que existe o menor de rua?
Depois que estava na rua, fui estudar na Escola Oficina. Foi lá que consegui aprender alguma coisa. Mas de quem? Da instituição Escola Oficina? Não. Aprendi com meia dúzia de professores que questionavam, que brigavam para que a coisa melhorasse. A Escola Oficina hoje é falida. Ela perdeu tudo. Os 'homens' não concordavam com os professores e mandaram embora.
Foi lá que esses professores desenvolveram em mim a vontade de querer estudar. Foi lendo livro tipo Capitães de Areia que comecei a ver que quase 50 anos atrás existia menores de rua e que eu estava na mesma situação deles. Aí dentro de mim fazia a pergunta: por que existe menor de rua?
É importante que existam esses meninos de rua! (Fala em tom irônico). Eu acho que o número de menores infratores é muito pequeno. Quando as pessoas falam que só tem ladrão, não levam em conta que tem muita gente que mora em barraco e não tem nem o que comer e se submetem a lavar prato para a madame, submetem-se a limpar escritório para patrão. Levantam cedo, enfrentam ônibus lotado: eles não vivem; vegetam. Já pensou se essa camada toda de pobres falasse assim: "Olha, vou sair para roubar!" O número de meninos que rouba é pouco em relação a toda essa gente pobre.
Na Escola Oficina, falei num dia que ia escrever um livro sobre a minha vida. Todo mundo achou legal, porque eles pensavam assim: se a gente incentivar o Collen para escrever o livro, ele fica na Escola e deixa de ir à Praça da Sé para cheirar cola de sapateiro. Eles não achavam que o livro ia ser publicado, mas eu estava convencido que ia.
O que vem pelo futuro
A minha vida não se resume só em um livro que escrevi. Imagina! Esse livro para mim é a primeira porta que eu abri. Tem uma porrada de portas que eu ainda vou abrir todas elas. Eu quero estudar muito. E porque eu sei qual é a guerra que vou ter pela frente. Porque a sociedade está esperando que o Paulo Collen seja uma Cristiane F., uma Carolina de Jesus, um Pixote, um Edmilson, que todos tiveram um fim trágico. Eu vou provar para a sociedade e para mim mesmo que o meu fim não vai ser trágico. Eu não estou iludido com meu livro, com o sucesso que ele está fazendo.
Eu sempre nasci com o espírito revolucionário. Quero mudanças. Vou lutar para que isso aconteça. Eu acho que a mudança para ser geral precisa mexer na educação. Mexendo na educação, todo mundo muda. Por que não muda a educação? Porque não é interessante que os jovens no Brasil saibam de alguma coisa. Lá na FEBEM as crianças ficam o tempo todo assistindo televisão e eles não aprendem nada com isso.
A minha cabeça funciona 24 horas por dia com possibilidade de mudanças, mas eu preciso de subsídios, recursos, estudos. Eu sei qual é a guerra que eu vou enfrentar e eu não quero ser um soldado que vai para a guerra e nem sabe manejar as armas e perde a guerra. Quero ferramentas dentro de mim para quando sair por aí dizendo que é assim, assim. Sabem o que eles fazem? Me sopram e eu caio. Então, quero estar com alicerces de concreto, bem forte. A minha responsabilidade com essas crianças é grande. Eu tenho compromisso é com elas. É para elas que tenho que pensar 24 horas por dia. Vai nascer bastante jovem com cabeça."
Conselho Federal de Psicologia
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