segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Carta do Rio e Democratização da Comunicação

((Carta do Rio)) Democratização das Comunicações no Brasil – “aquela dívida ainda está bem viva”


Os meios de comunicação participam do cotidiano dos brasileiros e brasileiras de forma fundamental. São muitas horas assistindo televisão, ouvindo rádio, navegando na internet, lendo jornais e revistas, falando ao telefone ou indo ao cinema. Todos esses produtos e serviços, porém, são controlados por alguns poucos grupos com amplo poder sobre o setor das comunicações.

Esse domínio direto de algumas poucas famílias sobre todo o sistema nacional de comunicação se estabeleceu ao longo do século XX, principalmente em sua segunda metade – impulsionado pelo capitalismo monopolista brasileiro consolidado pela Ditadura Civil-Militar. O setor foi estruturado política e economicamente, priorizando a lógica privada/comercial, a concentração da propriedade, o compadrio, o conservadorismo, o patrimonialismo, o alinhamento com os projetos de manutenção da ordem e a marginalização de setores que lutam pelo alargamento da participação democrática.

Em defesa da “democratização das comunicações”, da “liberdade de expressão” e do “direito à comunicação”, uma série de entidades, coletivos e indivíduos vem lutando ao longo de décadas por uma modificação profunda nesse sistema, enfrentando o poder do empresariado conservador e cobrando dos sucessivos governos mudanças efetivas. Apesar de excluídos de decisões fundamentais, como a definição do Sistema Brasileiro de TV Digital, esses grupos que compõem um movimento em defesa de direitos conseguiu algumas poucas vitórias como a realização de uma primeira Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), a criação de uma empresa nacional de comunicação pública – a EBC – e, mais recentemente, aprovação da Lei de Acesso à Informação (LAI) e o Marco Civil da Internet.

Ainda que fundamentais, essas conquistas têm se mostrado bastante insuficientes. As resoluções da Confecom não saíram do papel, a EBC enfrenta cotidianamente o desafio de se desvencilhar dos interesses não-públicos e de valorizar um quadro de funcionários capaz de fazer um trabalho crítico, assim como o Marco Civil da Internet corre o risco de, sob o ataque dos interesses comerciais e conservadores, ser desfigurado na fase da sua regulamentação.

No que diz respeito à comunicação comunitária, independente e alternativa, a tônica da política federal desde sempre tem sido a repressão, o fechamento e a criminalização. Essa situação é agravada por uma lei que sufoca e inviabiliza as rádios comunitárias.  Vários indivíduos e grupos, independentes ou não, que se dispuseram a veicular por meios de canais de comunicação os atos públicos em defesa da garantia de direitos têm também enfrentado a repressão policial.

Com a digitalização da TV e a normatização do Canal da Cidadania, surge pela primeira vez a possibilidade de se ter no país TVs comunitárias funcionando regularmente em sinal aberto, porém o processo tem se mostrado confuso, lento e sem apoio do poder público local, estadual ou federal. As emissoras comunitárias sofrem atualmente com a falta de verbas fundamentais para garantir o seu funcionamento regular e encontram-se praticamente inacessíveis aos grupos que não podem pagar por uma TV à cabo.

Paralelo a isso, a popularização da internet tem permitido a emergência de uma série de novos atores. São blogueiros, midiativistas e outras denominações que se engajam na tarefa de veicular conteúdos que destoam do discurso único da comunicação tradicional e daqueles que as dominam. Mesmo esses, porém, se deparam com dificuldades como a judicialização, que busca constranger a veiculação de conteúdos que ferem o interesse das elites. Observam, também, o crescimento do poderio das corporações internacionais, que dominam os sistemas de telecomunicação e os provedores de serviços de internet e criam filtros que sufocam a diversidade e o debate crítico.

Apesar da demanda crescente da população por serviços de internet, o Programa Nacional de Banda Larga (PNBL) tem ficado muito aquém das suas próprias metas. O governo não assumiu um verdadeiro compromisso com a universalização, e cada vez mais fica claro que somente o regime público de exploração pode garantir esse princípio. As empresas de telecomunicação, transnacionais estrangeiras que dominam o setor de telefonia e internet, se destacam pela péssima qualidade dos serviços oferecidos e, em troca disso, recebem benefícios como os chamados “incentivos fiscais” e os “bens reversíveis”, que representam, na prática, esquemas de transferência do patrimônio público para o controle privado sem contrapartida.

Enquanto países da América Latina avançam na regulação e regulamentação das comunicações - ampliando o número de atores, valorizando a comunicação pública e comunitária, incentivando a diversidade e restringindo a concentração da propriedade - no Brasil, praticamente não se progrediu nesse sentido. Mesmo a recente Lei de Serviços de Acesso Condicionado  (SeAC) pouco conquistou nessa direção. A oportunidade de se ter uma mudança nesse cenário cada vez mais se vê obscurecida pelo fortalecimento da ideologia conservadora, que tem saído às ruas reivindicando a supressão de liberdades e direitos civis.

Dentro desse cenário, o movimento que luta pelo Direito à Comunicação, impulsionado pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), elaborou o Projeto de Lei da Mídia Democrática, que se apresenta como um instrumento de diálogo com a população brasileira capaz de sintetizar boa parte dos eixos fundamentais defendidos ao longo de décadas. Embora saibamos que com isto ainda não se dá conta de todas as questões, nós reunidos neste encontro no Rio de Janeiro entendemos que é, no mínimo, a partir das diretrizes deste documento que se deve iniciar o diálogo com o governo sobre a regulação da mídia.

A presidenta Dilma, no fim do ano passado, se referiu à possibilidade de se avançar nesse sentido e nós reivindicamos que esse diálogo se inicie a partir dessa redação que busca sintetizar as diretrizes definidas pela Confecom e as décadas de acúmulo na luta pela efetivação do direito à comunicação no Brasil e pela democratização da nossa sociedade.

Enfatizamos ainda a importância de se valorizar a comunicação pública, ampliar o orçamento do setor e implementar os Canais da Cidadania, da Cultura, da Educação. Defendemos também a importância de se observar a laicidade do Estado e a garantia da manifestação da diversidade religiosa. É necessário disputar os rumos da EBC para que se torne de fato um instrumento da classe trabalhadora. Nesse sentido, é importante fortalecer os espaços de participação da sociedade civil como o Conselho Curador da EBC.

Queremos também o efetivo funcionamento de mecanismos de participação como as consultas e audiências públicas, a instalação e manutenção de conselhos de comunicação capazes de cumprir o papel de debater políticas públicas de forma independente aos interesses econômicos e privados, assim como o efetivo funcionamento do Conselho de Comunicação Social previsto no artigo 224 da constituição.

Defendemos que a comunicação comunitária seja valorizada, financiada com dinheiro público, não sendo tratada como caso de polícia, que os pedidos de outorga sejam avaliados de forma eficiente, visando a diversidade e o direito à comunicação. A mudança da lei que regulamenta a radiodifusão comunitária é fundamental para avançar nessa direção.

Acreditamos que com essas medidas podemos dar um pontapé inicial em um verdadeiro processo de democratização da comunicação. Uma dívida que o povo brasileiro precisa cobrar.

Texto elaborado e aprovado pelos participantes do Encontro Estadual pelo Direito à Comunicação realizado no Rio de Janeiro em 28 de março de 2015

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