de Pier Francesco Zarcone
http://www.fdca.it/fdcapt/imprensa/cadernos/mexico/mexico.htm
Não é arriscado colocar a hipótese de que os anarquistas e libertários hoje chegados à meia-idade ("os panteras cinzentas", se poderia dizer), durante os anos '60/'70 do século passado viram com uma participação emotiva intensa os filmes que a cinematografia italiana produziu acerca da revolução mexicana, com certa freqüência e numa visão politizada no seguimento de '68. Desde "Giù la testa" até "Tepepa", ou "¿Quién sabe?", "Vamos a matar compañeros", para não falar do prévio e mítico "¡Viva Zapata!".
Mas com toda probabilidade, a maioria deles não sabia (e talvez nem sequer hoje saiba) qual tinha sido o papel desenvolvido pelos anarquistas e pelo anarquismo mexicanos nesses eventos tão distantes. Nenhuma surpresa, no fundo: trata-se de outra página da história anarquista escondida pelos vários "media" (que nunca fornecem aquilo que realmente precisamos), e em todo caso que pertence à aquela América Latina que não foi muito famosa na Europa durante muito tempo.
A mesma cinematografia acima indicada, no fundo, freqüentemente não chegava além dos aspectos exteriores, 'piscando o olho' aos humores de um público influenciado por uma atmosfera de revolta difusa, como acontecia nos anos '60 e '70. Coisa igualmente normal, porque a cinematografia recebe oxigénio do capital e dentro das lógicas rigorosas do seu sistema: assim, uma coisa é fazer dinheiro instrumentalizando também a contestação e outra coisa é fazer conhecer o que não convém.
Sabemos que o verdadeiro radicalismo revolucionário não dá lucro: o capital sempre pode concluir negócios até mesmo com os comunistas autoritários, mas com os anarquistas não. E então o jogo está feito: na apresentação (adaptada às exigências de espectacularidade) de páginas revolucionárias gloriosas, o papel dos anarquistas e libertários deve passar sob silêncio; ou - se isto não pode acontecer, como no caso da Revolução espanhola, onde estava presente um evidente e não ocultável fenómeno anarquista de massa - o zelo manifesta-se pela difamação, ou (no melhor dos casos) não se diz nada sobre as realizações concretas da revolução, talvez com a colaboração de aqueles supostos anarquistas/liberais, de alma embranquecida, que hoje se associam aos coros interessados na crueldade dos anarquistas espanhóis durante os acontecimentos revolucionários.
Redescobrir as páginas de história da Revolução Mexicana na perspectiva do anarquismo tem uma utilidade dupla: a) histórica, tratando-se da primeira Revolução do século XX° que, sem a influência anarquista, teria sido sem dúvida diferente; b) política actual, porque os efeitos desta revolução são a base do zapatismo do EZLN no Chiapas de hoje, e podem ser projectados, por extensão, sobre o renovado dinamismo do anarquismo comunista latino/americano neste milénio novo.
SÍNTESE DA HISTÓRIA MODERNA DO MÉXICO
Durante muito tempo a Revolução mexicana foi considerada na Europa como folclórica, como uma jaquerie confusa indio/mestiça, de escassa valência política/ideológica, que ocupa um lugar secundário na história. Avaliação sem dúvida restritiva.
O México teve e tem uma história trágica que se manifesta no imaginário coletivo do seu povo pela atribuição de uma conotação feminina à mãe-terra, que tem o papel de Chingada (o mulher violada); e filhos da Chingada são os mexicanos. A tragédia do México não teve origem na conquista espanhola, sem dúvida vivida como uma catástrofe cósmica: o fim de um mundo no sangue e na destruição, na colonização forçada das ruínas do país e da psique mesma das pessoas.
O domínio azteca já era um domínio sangrento de um povo minoritário cujo império - de acordo com uma ideologia religiosa - tinha que oferecer continuamente sacrifícios humanos aos deuses. Os espanhóis - além de idioma novo, religião nova, leis novas - levaram doenças que dizimaram os sobreviventes da guerra de conquista, uma exploração selvagem de indígenas e mestiços (estes nascidos depois da conquista), e para todos - dominantes e dominados - a escura opressão espiritual da Inquisição católica.
No século XIX° os ventos originados pela Revolução francesa e o napoleonismo chegaram também ao México, e deram força aos movimentos para a independência do país. Mas houve aqui em elemento diferencial por comparação aos outros países da América Latina. No México, o movimento independentista não foi encorajado por membros das classes privilegiadas (como, noutros lugares, Bolívar, Miranda, ou San Martín), mas por camponeses indígenas e mestiços, dirigidos por dois padres, eles também camponeses: primeiro o Miguel Hidalgo (1810-1811) e depois o José María Morelos (1814), ambos derrotados e fuzilados pelos espanhóis.
O mestiço Agustín Itúrbide em 1821, levou o México à independência, e no ano seguinte será proclamado imperador, terminando a sua vida em 1824 frente a um pelotão de execução. Será então o general António López de Santa Ana a dirigir o México republicano de 1835 até 1855; e Santa Ana terá que fazer frente à voracidade incipiente do imperialismo yankee. Em 1835 houve a secessão dos colonos norteamericanos do Texas (cuja entrada na região foi imprudentemente favorecida pelo governo próprio mexicano) que - depois da vitória efémera de Santa Ana em Álamo - em 1836 se concluiu com a independência texana.
Os Texas uniu-se aos Estados Unidos no 1845, e no mesmo ano (sacudindo a bandeira do "destino manifesto"; o deles) o governo de Washington achou a maneira de fazer a guerra contra a república mexicana; guerra concluída no 1848: as partes assinaram o tratado de Guadalupe Hidalgo que privou o México de territórios ulteriores: Alta Califórnia, Arizona, Novo México, Colorado.
Deposto o Santa Ana no 1855 (ele escapou para Cuba) chegou finalmente à Presidência o índio Benito Juárez, liberal radical que desde a defesa da independência do que ficava do México quis passar a um horizonte mais grande: a Reforma da ordem social mexicana. O que significou luta contra a conservação feudal, as oligarquias do latifundio e - por conseqüência natural - a igreja católica que sempre foi um sólido pilar político, econômico e espiritual, em favor daquelas classes sociais.
O México precipitou novamente na guerra civil desencadeada pelas direitas reacionárias e conservadoras, com o agravar de uma intervenção estrangeira - França, Espanha e Grã Bretanha - no 1864, depois da interrupção nos pagamentos das dívidas externas da república mexicana, por causa de dificuldades econômicas. O emperador Napoleón III° tinha reais projetos imperialistas e invadiu o país de acordo com as direitas mexicanas. O Maximilian de Habsburgo aceitou a coroa imperial oferecida-lhe pelos conservadores, sem bases reais de consentimento no país, só apoiado pelas baionetas francesas.
A reação armada de Juárez, apoiado pelo povo, concluiu a aventura do Maximilian no 1867 com o fuzilamento dele em Querétaro.
Depois do Juárez começou, no 1876, o período ditatorial do Porfirio Díaz, ex general juarista que afundou a Reforma (porém nunca escapada dos seus límites liberais) criando aquela situação social explosiva que rebenterá no 1910.
Naquele ano, os grandes proprietários de terras do México eram 840, e aproximadamente 12 milhões os camponeses sem terra. As grandes propriedades rurais tinham dimenções semelhantes às de uma província europeia, e os fazendeiros nas suas terra eram praticamente os donos absolutos de homens e coisas. O exército - armado com canhões e rifles alemães e metralhadoras norteamericanas - era o verdadeiro fundamento do régime do Porfírio Díaz.
No inteiro mundo occidental não existia uma classe social dotada de um nível de vida e poder comparável com o nível dos proprietários de terras e minas mexicanos (naquela altura, o México producia um quarto da produção mundial da prata).
Os dois pilares principais do sistema das propriedades rurais eram:
a) as tiendas de raya = lojas de géneros comestíveis, licores e roupas de baixa qualidade (os proprietários delas eram os próprios fazendeiros), onde os camponeses de uma fazenda eram forçados a fazer as compras, também e principalmente a crédito; por este sistema os fazendeiros - que revendiam bens de pouco valor a preços superiores - quase recuperavam o dinheiro atribuído aos salários e os camponeses endividados não podiam mover-se das fazendas onde trabalhavam antes de ter pago as dívidas assim contraidas (o sistema ainda está em uso em muitas partes de América do Sul);
b) a ley de fuga = que permitia aos donos de matar o camponês fugitivo; para os trabalhadores rebeldes um castigo muito usado consistia em pôr o rebelde num buraco na terra, com a cabeça fora, e fazê-la pisar pelos cavalos a galope.
Naturalmente as mulheres e filhas dos camponeses eram "carne de cama" para os fazendeiros (por exemplo, foi esta situação, sufrida pela sua irmã, que deu origem à carreira de bandido, antes da Revolução, de Francisco Doroteo Arango chamado depois Pancho Villa).
Entretanto o povo vivia num estado de miséria extrema: 70% da população alimentava-se de tortillas de milho, mas as importações de géneros supérfluos e de luxo pelas exigências dos ricos faziam sair do país um rio de dinheiro, de ouro e de prata para os Estados Unidos e a França. Outro rio consistente de ouro saía do México em virtude dos lucros que o governo de Díaz assegurava aos investimentos dos capitalistas estrangeiros. Por volta de 1910, 97% das minas estavam nas mãos de americanos, ingleses e franceses. Eram de sociedades USA todos os poços de petróleo descobertos em Tampico, Tuxpán, Matamoros e Reinosa, tal como a maioria das minas de prata e ouro da Sierra ocidental e da Sierra do Sul.
Quando em 1910 a situação explodiu, ocorreu a primeira revolução social do século de XX°: uma revolução mais rural que urbana, cuja influência nos outros países da área foi enorme. Por exemplo, sem a revolução mexicana não seria possível explicar nem Augusto César Sandino na Nicarágua nem Farabundo Martí em El Salvador.
AS ORIGENS DO ANARQUISMO MEXICANO
Seria um erro pensar, com base nas poucas fontes escritas existentes em italiano solbre o assunto, que o anarquismo mexicano nasceu com o pensamento e trabalho de Ricardo Flores Magón (1874-1922): o nascimento desta corrente no México aconteceu pelo menos 50 anos antes da grande revolução do 1910. O seu desenvolvimento ocorreu no quadro do México depois da independência e da sua abertura às influências europeias.
Como era óbvio, a independência não resolveu nenhum dos problemas do país, e começou um período longo de convulsões políticas e sociais/económicas, ditaduras, intervenções militares estrangeiras (E.U.A. e França), perda de quase a metade do território primitivo, tragado pelo imperialismo yankee, motins populares e repressões. Problemas que existem ainda hoje - naturalmente na mudança de contextos seguida à Revolução de 1910, por causa da normalização feita pela burguesia "radical" saída vencedora dela. A tentativa de Robert Owen em 1824, de instalar no Texas (região mexicana naquela altura) uma concretização da sua sociedade perfeita chamada "Harmonia Nova" não teve éxito, e a história do anarquismo no México começou com o a pessoa do imigrado grego Plotinós Rhodakanaty. Inspirado pelas idéias de Fourier e Proudhon, ele assumiu um certo conhecimento dos problemas dos camponeses explorados pelos proprietários de terra, e quis dar impulso a uma organização rural, enquanto obrava para constituir um sistema socialista de colónias agrícolas.
Com o objetivo de fazer prosélitos editou a Nota Socialista, uma espécie de catecismo fourierista. Não tendo podido juntar um número suficiente de pessoas para organizar uma colónia agrícola, entrou numa escola preparatória, e fazendo propaganda do socialismo libertário chegou a formar em 1863 um grupo de estudo - o Grupo de Estudiantes Socialistas que serão personalidades importantes no movimento socialista mexicano: Santiago Villanueva, organizador do primeiro movimento de trabalhadores no país; Hermenegildo Villavicencio colaborador daquele; Francisco Zalacosta, figura de relevo na futura luta dos camponeses.
Completada a formação em 1864, aqueles estudantes darão vida à primeira organização mútua mexicana, a Sociedad Particular de Socorros Mútuos, com orientação socialista libertária. Do mesmo grupo de estudantes, em 1868 nasceu uma sociedade secreta de inspiração bakuninista - A Social-Sección Internacionalista - que desapareceu em 1868, e foi formada novamente em 1871 (entre os sócios: Rhodakanaty, Villanueva, Zalacosta e Villavicencio), exercendo uma influência notável na criação dos movimentos camponês e de trabalhadores no decurso do século.
Em Maio de 1865 Zalacosta, Villanueva e o grupo deles desenvolveu um papel importante nas agitações que levaram à primeira greve, a dos trabalhadores das fábricas têxteis de San Idelfonso Tlalnapantia e A Colmena, terminadas com a intervenção armada do governo.
Depois desta derrota, Villavicencio e Villanueva criaram outra sociedade bakuninista, a Sociedad Agrícola Oriental que nos anos '60, '70 e '80 do século XIX foi o centro principal da atividade anarquista no México. Entretanto Rhodakanaty continuava os esforços para constituir comunidades agrícolas, e organizou em Chalco uma escola para camponeses - a Escuela del Rayo y del Socialismo - de acordo com os princípios do socialismo libertário. Um dos estudantes mais talentosos dele foi Julio Chávez López.
Chávez López era a favor do recurso aos métodos enérgicos e à acção directa, o que o pôs em contraste com o pacifismo inveterado de Rhodakanaty, o qual deixou esta Escola em 1867. De seguida, Chávez López desenvolveu um papel activo nas lutas armadas sociais que fizeram dele um precursor do zapatismo.
Junto com alguns camaradas com as mesmas ideias dele, Chávez López começou a atacar propriedades rurais, primeiro nas áreas de Chalco e Texcoco, depois no Morelos do Sur, em San Martín Texmelucán e no Tlalpán. Em 1869 o governo enviou uma expedição militar que só fez ampliar o apoio popular à revolta, tanto que em Abril do mesmo ano, Chávez López teve a audácia de publicar um cartaz para incitar os mexicanos à rebelião armada geral.
A importância de seu cartaz está no facto de que, pela primeira vez na história mexicana, a revolta dos camponeses vir conceptualmente e conscientemente integrada na luta de classes, dentro do contexto histórico específico daquele país, com determinação clara dos papeis e das responsabilidades das classes dominantes. O cartaz propunha também a substituição do governo nacional com um sistema de governos autónomos locais. Capturado, Chávez López pasado pouco tempo fugiu e retomou a luta contra o exército até que, novamente capturado pelas tropas do Presidente Benito Juárez, foi fuzilado a 1° de setembro de 1869.
Contudo, a derrota e morte de Chávez López, o regresso de Rhodakanaty para a sua pátria, a falta de progressos de La Social e a Sociedad Particular de Socorros Mútuos, não representam o fim do jovem anarquismo mexicano. Entretanto Villanueva e Villavicencio constituíram a Sociedad Artística Industrial que teve uma influência fundamental no desenvolvimento do movimento dos trabalhadores, começando uma intensa ação de proselitismo na área da capital entre os anos 1866 e 1867. No Verão de 1868 os trabalhadores da fábrica têxtil 'A Fama Montesa' de Tlalpán, organizados por Villanueva, fizeram pela primeira greve, a primeira na história mexicana.
Este evento deu impulso ulterior à actividade de organização, e em 1870 - sempre por estímulo de Villanueva - foi criado o Centro General de los Trabajadores Organizados, depois com o nome de Grande Círculo de Obreros México. Villanueva morreu em 1872, mas o movimento estava em marcha, e no 1876 os esforços de criação de uma organização nacional levaram ao Congresso General Obrero da República Mexicana; e, paralelamente, entre 1877 e 1878, La Social alcançou a sua máxima expansão, de maneira que naquela fase os anarquistas ficavam hegemónicos no movimento operário. Em 1878 foi formado o Partido Comunista Mexicano, de tendência bakuninista, que foi dissolvido muito depressa pela repressão do Porfírio Díaz.
Apesar da derrota de Chávez López, o movimento rural continuou a trabalhar, encontrando apoio na imprensa operária da capital. Naquela altura, portanto, surgia fora da realidade uma separação política entre o mundo operário e o mundo rural, que -pelo contrário- acontecerá durante a Revolução, e que será prejudicial para ambos. Na década 1870/1880 o mais importante animador do movimento rural mexicano era José María González. Estabelecido o longo regime ditatorial de Porfirio Díaz, o grupo bakuninista organizado em La Social elaborará um plano revolucionário, recebido favoravelmente pelos grupos rurais, que previa o colapso do governo nacional, a criação de assembleias municipais autónomas, uma reforma agrária radical, a abolição final do sistema de salário, a formação de bancos territoriais para apoiar a venda dos produtos agrícolos e a criação de um Falanstério Social para regular o trabalho urbano e rural. Para apoiar desta iniciativa Zalacosta formou um Comité de Coordenação, o Gran Comité Central Comunero.
No contexto destas agitações, o coronel Alberto Santa Fé publicou na imprensa operária a Ley del Pueblo considerada o documento agrarista mais sofisticado e mais complexo da altura antes da Revolução. Por esta inciativa Santa Fé foi aprisionado.
A repressão do governo começou a desenvolver-se com dureza: Francisco Zalacosta foi fuzilado na cidade de Querétaro em 1880, duas revoltas foram afogadas em sangue pelo exército federal, os círculos anarquistas foram fechados e progressivamente o governo pôde assumir o contrôlo do movimento operário. Um golpe duro ao movimento anarquista das cooperativas foi dado através de uma norma que as ilegalizou e, quando a norma foi revocada, a legalização das cooperativas foi subordinada ao regulamento e controle do governo. Tentativas ulteriores de revolta foram reprimidas, como aconteceu em 1886 com a revolta do general Miguel Negrete, que - no Estado de Morelos- já anteriormente tinha dado o seu apoio à ação de Chávez López. Negrete foi fuzilado no mesmo ano.
Lembramos, finalmente, que entre o 1898 e o 1899 o anarquista catalão J. Zaldivar constituiu grupos anarquistas na península de Yucatan.
O SÉCULO NOVO - RICARDO FLORES MAGÓN
Nos primeiros anos do séc. XX, o anarquismo mexicano surgia emancipado das tendências cooperativistas, e orientado em direcção a uma posição anarcosindicalista e mais dura na luta de classes, também pela presença e influência imigrados anarquistas espanhóis. E foi no começo do novo século que o anarquismo mexicano, em virtude do trabalho de Ricardo Flores Magón, veio ter uma organização política poderosa.
Ricardo Flores Magón com os seus dois irmãos - Jesus e Enrique - iniciou-se em política participando nas manifestações contra uma nova candidatura do Porfirio Díaz às eleições presidenciais do 1892. Em seguida publicou a revista O Democrata, orientando-se progressivamente para posições de esquerda libertária. A 7 de agosto de 1900, pela influência do Paulo Robin - pedagogo libertário, camarada de Bakunin e velho membro da Comuna de Paris - com dois irmãos e Antônio Horcasitas, fundou o periódico Regeneración, que muito cedo se tornou o fórum de uma oposição maciça e inflexível contra o regime do Porfirio Díaz.
A 30 de Agosto do mesmo ano, em San Luís Potosí, Camilo Arriaga publicou o Manifiesto del Partido Liberal, começando um processo que levará à constituição do Partido Liberal Mexicano (PLM) no 1905. Ricardo Flores Magón aderiu formalmente a este processo em 1901.
O Partido Liberal estava constituído inicialmente em torno de um programa burguês muito radical, tanto que a sua seção relativa à Plataforma del Trabajo foi adoptada pela maioria do movimento operário mexicano durante a Revolução.
No entanto, a situação social do país deteriorava-se ulteriomente, com uma progressão que em poucos anos iria levar à perturbação mais radical que o México jamais conheceu desde a conquista espanhola.
Contra esta campanha anti-reeleccionista de Regeneración desencadeou-se a repressão do governo, e o periódico interrompeu as publicações temporariamente. Ricardo e Enrique Flores Magón refugiam-se nos Estados Unidos, e em Novembro de 1904 puderam recomeçar a publicação da revista (verdadeiro espinho no flanco da ditadura do Díaz) em San Antonio, Texas. A permanência de Ricardo Flores Magón nos Estados Unidos foi muito difícil pelas numerosas detenções sofridas por instigação do governo mexicano; passou nas prisões norteamericanas a maioria dos anos seguintes de sua vida, até quando morreu em 1922, contudo conseguindo exercer alguma influência na Revolução.
Em Junho de 1906, uma greve dos trabalhadores da sociedade americana Cananea Cobre Company, de Sonora, levou a dois dias de batalha feroz entre os grevistas e... os Rangers do Arizona (!), chamados pela Direção da Cananea, estando distantes as tropas mexicanas. Outra greve importante foi, em Dezembro a da fábrica de Rio Blanco em Orizaba, organizada por um grupo de trabalhadores afiliados ao PLM. A agitação, que teve pouco éxito, causou escaramuças com o exército que esmagou a revolta.
O PLM - cujos mais importantes membros, além de Ricardo Flores Magón, eram Práxedes Guerrero, Juan Sarabia Villa Real, Enrique Flores Magón, Rivera Liberado e Manuel Sarabia) - organizou 44 grupos secretos de guerrilheiros espalhados pelo país inteiro (em média um grupo tinha 50 pessoas, mas houve também grupos de 300) que tinham o seu centro directivo em Douglas, Arizona; mas os tempos não estavam ainda maduros. Os Rangers do Arizona pararam a maioria dos revolucionários do PLM em Douglas, e uma revolta em Vera Cruz, dirigida por Hilario C. Salas, falhou.
Contudo, o prestígio do PLM saiu disto imensamente aumentado.
Outro ambiente onde o PLM trabalhou era o indígena. Com referência a este deve-se clarificar preliminarmente que a resistência dos índios contra a opressão européia e mexicana até hoje não parou nunca, em suas várias formas também armadas, e que as nações indígenas de México sempre foram parte activa nas convulsões sociais que periodicamente sacudiam o país. A resistência índia sempre reivindicou os tradicionais direitos das comunidades, lutando contra a propriedade capitalista.
Foi em 1906 a primeira tentativa do PLM de tomar contato com a realidade indígena através de uma luta armada contra Díaz. Javier Guinetea foi encarregado disto em relação à tribo yaqui de Sonora, cuja ferocidade bélica era lendária no país inteiro. Não era uma simples táctica, mas a expressão da sensibilidade magonista para com o mundo índio.
A realidade das comunidades indígenas (até hoje em dia vivas no México) não podia deixar de influenciar a evolução libertária de Ricardo Flores Magón, e o comunalismo indígena representou um dos eixos do pensamento dele, cuja esencialidade não escapou aos directos interessados.
Demonstra-o uma declaração oficial, de julho de 1914, da tribo yaqui (que as autoridades mexicanas consideraram sempre como se fosse um conjunto de animais ferozes, dignos de matar ou escravizar):
"Com a mão sobre o coração convidamos Vocês a vir a este acampamento onde Vocês serão recebidos com os braços abertos pelos irmãos de miséria. Nós não temos palavras para expressar quanto apreciamos os sacrifícios feitos em nosso favor, e esperamos que Vocês sejam sempre bem dispostos a dar-nos a mão, enquanto o capitalismo não desapareça desta região yaqui e até que a bandeira vermelha de Terra e Liberdade não tenha mais inimigos".
A greve da Cananea foi só um episódio da sequência de agitações sociais que revolveram o país e que também continuarão depois.
Neste vórtice de eventos, o PLM - sob influência de Ricardo Flores Magón - entrou numa dinâmica de ultrapassar os objectivos originais radicais, essencialmente destinados a expulsar Porfirio Díaz e restabelecer os direitos civis e políticos no país. Objectivos e posições que ainda em 1905 permitiam a Francisco Madero (1873-1913) elogiar o PLM e contribuir economicamente para as necessidades de seu órgão Regeneración. Mas já em 1906 Madero discordava da declaração do PLM sobre esgotamento dos meios pacíficos para combater Díaz. Foi em 1907 que, formalmente, Ricardo Flores Magón completou o seu caminho para o anarquismo, começado em 1900 partindo das obras de Kropotkin, Bakunin, Jean Pesado, Malatesta, Gorki.
Radicalização libertária que também interessou a maioria do PLM, pelo efeito combinado da participação nos movimentos de 1906 e do apoio dado pelo Partido ao movimento operário: o que levou à fractura completa com o Madero. Naturalmente o PLM sofreu as deserções de quantos não compartilhavam a mudança de posições, e isto acentuou o radicalismo de Ricardo e da maioria do PLM.
A permanência nos Estados Unidos de Ricardo Flores Magón e os seus camaradas, como foi dito, não era propriamente um exílio dourado. Os governos americanos, depois do assassinato do Presidente McKinley no 1901, tinham declarado guerra aos anarquistas, vítimas de repressões pesadas que nos anos '30 levaram à liquidação, na prática, do anarquismo naquele país.
As autoridades do EUA compreenderam logo que os magonistas, e principalmente Ricardo, não constituiam só um problema mexicano, mas que eles também podiam tornar-se um problema na própria casa dos Yankees, pela a capacidade de galvanização do seu líder. Já em 1907, quase toda a direção do PLM exilada nos Estados Unidos foi aprisionada pelas pressões do governo mexicano. A perseguição judicial não parou e os magonistas exilados foram freqüentemente processados pelas suas idéias e com a acusação de ter violado a neutralidade norteamericana com referência aos assuntos do México (santa hipocrisia dos yankees!). Ricardo passou nas prisões norteamericanas mais que a metade dos 19 anos da sua permanência além do Rio Grande, assistindo, impotente, ao progressivo deteriorar-se, durante a sua ausência, do PLM: uma parte dos membros convergiu para as fileiras dos maderistas, e depois houve outra divisão entre as várias facções que começaram a combater Madero.
A REVOLUÇÃO
A 20 de novembro de 1910 explodiu a Revolução contra Díaz, e depois da batalha de Ciudad Juárez vencida pelas forzas revolucionárias de Pancho Villa e da demissião/fuga do ditador a 25 de Maio de 1911, Madero tornou-se Presidente da República em resultado das eleições presidenciais de 1° de Outubro.
Embora a repressão dos EUA tenha paralisado a Direção do PLM no exílio - os magonistas e os revolucionários do PLM foram personagens principais da libertação da Baja Califórnia, coordenadas por Ricardo Flores Magón, momentaneamente em liberdade nos Estados Unidos. A 29 de Janeiro de 1911, dirigidos por José Maria Leyva e Simón Berthold, os guerilheiros do PLM conquistaram a cidade de Mexcali, com uma força de apenas 18 homens, que ascenderam depressa a 500, dos quais aproximadamente 100 (exemplo de verdadeiro internacionalismo revolucionário) deles eram wobblies norteamericanos dos sindicatos da Industrial Workers of the World (IWW): entre eles Frank Little e José Hill. Jack London escreveu um cartaz de apoio a estes revolucionários onde lhes estava garantido o apoio dos corações e das almas de "socialistas, anarquistas, vagabundos, ladrões de galinhas, e cidadãos indesejáveis dos Estados Unidos de América". As tentativas das tropas federais de reconquistar Mexcali falharam.
Os magonistas, além disto, obtiveram vitórias noutras cidades tais como Novo León, Chihuahua, Sonora e, em Março do 1911, Prisciliano Silva do PLM conquistou Guadalupe, no Estado de Chihuahua e em junho Casas Grandes, na mesma região.
Mas no Verão, Madero enviou os seus homens armados para retomar pela força o controle da Baja Califórnia e os revolucionários anarquistas do PLM sofreram uma dura derrota militar .
O Presidente Madero formou um governo burguês que (nem podía ser o contrário, dada a formação dos seus membros) não teve qualquer intenção de ir para além do liberalismo democrático.
Os magonistas exilados nos E.U.A. lançaram um cartaz ao povo mexicano para que apoiasse a causa anarquista, não propuseram nenhum candidato à Presidência nem um tipo novo de governo: simplesmente eles chamaram a lutar pela emancipação económica das classes trabalhadoras, a expropriação das terras dos latifundistas e a coletivização dos outros meios de produção industrial e de toda a riqueza social, e a fazer oposição à formação de um governo, como condição indispensável para obter um sistema de liberdade autêntica.
Ficando claro que as esperanças suscitadas por Madero eram simplesmente órfãs, já em 1912 estavam em completo desenvolvimento as revoltas contra o regime dele; destas revoltas, a que foi realmente revolucionária foi a dirigida por Emiliano Zapata no Sul, partida do Estado de Morelos. A 25 de Novembro de 1911, Zapata lançou famoso Plan de Ayala, o documento ideológico da revolução camponesa mexicana.
Zapata não era formalmente anarquista, mas os seus objetivos eram os mesmo dos anarquistas, retomando a bandeira de Tierra y Libertad, característica dos magonistas nos primeiros anos do século e que o Zapata fez sua. O acordo entre ele e os membros libertários do PLM estava então na ordem das coisas, e não constituiam nenhum obstáculo a perspectiva política de Ricardo Flores Magón mais larga que a de Zapata.
Somaram-se às repressões sangrentas no Sul contra os zapatistas as ocorridas a Norte (Chihuahua) contra Pascual Orozco (que naquela altura se rebelou assumindo posições de esquerda), com um papel militar crescente atribuído por Madero ao general Victoriano Huerta (o seu futuro 'Pinochet') que - sem êxito - tentou fuzilar Pancho Villa. A 16 de outubro de 1912, em Vera Cruz, houve uma tentativa de revolta dirigida pelo general Félix Díaz (o neto do ex-ditador) que foi reprimida.
Até quando, em Fevereiro de 1913, depois de uma fracassada tentativa de golpe de estado em Ciudad de México, dirigida pelo general porfirista Mondragón, Huerta (apoiado activamente pelo embaixador dos EUA Lane Wilson, muito ligado aos industriais petrolíferos do seu país) tirou proveito da ocasião para mandar matar Madero e tomar o poder.
Estes factos causaram uma guerra civil terrível (mais de 800.000 mortos) que viu lutar contra Huerta e o exército federal várias facções (que depois lutarão a uma contra a outra), dirigidas por Pancho Villa em Chihuahua, Emiliano Zapata em Morelos, Venustiano Carranza no centro e Álvaro Obregón em Sonora.
Para o fim do 1914, Ricardo Flores Magón numa declaração oficial dirigida aos trabalhadores dos Estados Unidos afirmou: "Se na superfície deste conflicto terrível aparecem os nomes de Villa, Carranza ou alguma outra personalidade que, com base no que ensinam as acções deles, não têm outro objectivo que a tomada do poder, a verdade é que estes homens não são a revolução mas simples líderes militares que tentam satisfazer os seus desejos pessoais a expensas do movimento popular". E profeticamente concluiu que "Se alguma pessoa conseguir esmagar a revolução económica, os trabalhadores norteamericanos sofrerão as conseqüências, através de uma imigração de trabalhadores mexicanos numa medida bem maior do que aconteceu nos dez ou quinze anos passados, com uma quebra inevitável dos salários... As riquezas dos magnatas irão para o México, um campo ideal para todos os tipos de aventureiros e exploradores; os fabricantes dos Estados Unidos se mudarão para o México, que se tornará um território ideal para os negócios por causa dos salários baratos".
Na luta contra Huerta, o Venustiano Carranza era o homem político mais importante e aparentemente o líder da coalizão. Em 1914 a guerra civil - na qual as reivindicações de revolução social e agrária de índios e 'peones' (proletários agrícolas) foram entrelaçadas novamente com os factores politicos/democráticos - tornou-se desfavorável para Huerta que preferiu escapar, e Carranza tomou poder pelo prestígio nacional adquirido com sua reação vigorosa contra a ocupação temporária de Vera Cruz (previamente bombardeada) pelos marines USA, a 24 de abril de 1914.
Mas a guerra civil não acabou com a entrada de Carranza na Cidade de México a 20 de Agosto daquele ano. As contendas pessoais e políticas entre as várias facções e os chefes delas levaram a uma tentativa de conciliação criando uma Convenção, que se reuniu pela primeira vez a 1° de Outubro de 1914.
Villa e Zapata nem participaram nem enviaram seus representantes. A Convenção mudou-se então para Aguascalientes (que estava fora da área de influência do Carranza), e a maioria dos membros mostrou-se contrária à manutenção de Carranza no cargo de chefe do executivo provisiório, e nomeou para esta responsabilidade o general Eulálio Gutiérrez, que atribuiu a Villa a chefia do exército convencionalista. A 24 de Novembro, Zapata ordenou ao seu exército (que naquela altura tinha cerca de 25.000 homens) para marchar contra Ciudad de México, coisa que também fez Villa (ele havia aceitado o Plan de Ayala) de acordo com Zapata: a 10 de Dezembro de 1914 villistas e zapatistas ocuparam a capital.
Os conflitos entre Villa (mais que nunca caudillo) e Gutiérrez explodiram logo: e Gutiérrez escapou da capital. A situação precipitou o caos, frustrando a conquista de Ciudad de México, com toda a vantagem para Carranza, cujas tropas - dirigidas pelo óptimo general Obregón - em 1915 derrotaram as tropas de Villa em Celaya e depois definitivamente na batalha de Água Prieta. Villa pôde escapar da captura com poucos homens.
O reconhecimento dos EUA ao governo de Carranza fez perder a cabeça a Villa: em Janeiro de 1916, durante o ataque a um combóio em Sonora, Villa fez fuzilar 15 técnicos mineiros norteamerticanos que aí viajavam, e a 9 de Março passou a fronteira com o Estado norteamericano de Novo México e saqueou a cidade de Colombus: o que causou nas regiões septentrionais do México a intervenção de uma coluna militar USA que - para todos os efeitos - não foi nem sequer capaz de avistar Villa pelos binóculos. Villa acabou por negociar com os governamentais a sua rendição, e será assassinado em 1923 por alguns sicários (de Ogregón?).
Depois da derrota de Villa, Carranza convocou uma Assembleia Constituinte, naturalmente sem convidar Zapata: nesta, foi votada uma nova Constituição e Carranza eleito Presidente do México.
Quem continuava resistindo - embora isolado - era Emiliano Zapata, que acabou por ser assassinado numa emboscada a 10 de Dezembro de 1919.
Carranza, quebradas as ligações com o Obregón, será assassinado a 1920 e a 1° de Dezembro daquele ano o seu rival ascende à Presidência. Em 1924 será sucessor de Obregón o general Plutarco Elías Calles, cuja rígida política anticlerical causará a 1° de Agosto de 1926 uma reação do clero católico, que suspendeu a celebração das funções religiosas no país inteiro. Os católicos passaram à revolta armada (dita dos Cristeros), com crueldades por ambas as partes: esta última guerra civil acabou em 1929 com a derrota dos rebeldes católicos. No 1928 Obregón foi reeleito para a Presidência mas a 17 de Julho foi assassinado por um estudante católico. Com a morte dele pode considerar-se convencionalmente fechado o período revolucionário.
EMILIANO ZAPATA, ZAPATISMO E ANARQUISMO
Após a morte de Madero e a crise do PLM, a bandeira de Tierra y Libertad ficava só nas mãos do zapatistas.
As reivindicações do Plan de Ayala, em termos de reforma agrária radical, não eram "slogans" políticos vazios para os guerrilheiros de Zapata. Na redacção deste famoso cartaz revolucionário participaram elementos fortemente radicais como Otilo Montaño, professor simpatizante do PLM e o grupo libertário feminino Mulheres de Anahuac; e durante a guerra civil entraram no exército zapatista anarcosindicalistas como Luís Méndez, Rafael Pérez Taylor, Antônio Grove e Percorre, Jan Khna (suíço, sobrevivente da Comuna de Paris) e Miguel Mendoza. Este último, além de desenvolver um trabalho de educação racionalista entre os camponeses do Estado de Morelos, foi promoveu várias assembleias municipais libertárias nos anos 1915/1917.
Quando os zapatistas ocupavam um território, simplesmente expropriavam as haciendas, e davam a terra não aos indivíduos, mas às comunidades de aldeia enquanto tais, de forma que, de acordo com os costumes tradicionais delas, a pusessem à disposição dos camponeses membros da comunidade: isto com base no princípio que a terra deve estar ao serviço da comunidade e não dos interesses pessoais individuais.
O zapatistas constituiam um grupo socialmente homogéneo fortemente enraizado nas comunidades de Morelos; o que era um ponto óbvio de força naquele território, mas também de fraqueza fora dos limites daquele Estado, porque os zapatistas estavam pouco propensos para ir combater muito tempo longe da terra deles.
Emiliano Zapata, ao contrário de Villa e Carranza, não era um caudillo, e na estrutura de comando das formações zapatistas desenvolvia essencialmente um papel de coordenador, indubitavelmente favorecido pelo seu prestígio enorme, que outros teriam usado de uma maneira muito diferente.
A estrutura de comando zapatista era bastante descentralizada, e os comandantes dos vários grupos de guerrilha estavam acostumados a fazer ações bélicas em sincronia, e precisamente o comunalismo agrário básico dos zapatistas permitia que não se formassem hierarquias rígidas e institucionalizadas. As estruturas tradicionais das comunidades locais também contribuíam para que o poder político e social estivesse ao nível da comunidade e fluisse de baixo para cima.
Nas áreas controladas pelos zapatistas, o antagonismo contra o capitalismo e a propriedade privada era muito marcado. O centro da organização local ficava no Conselho de aldeia e, para obter o seu bom funcionamento, a premissa indispensável era sempre a expulsão violenta dos magistrados, fiscais de impostos, policias, etc. As decisões tomavam-se na comunidade, e por esta, e sem recorrer a uma autoridade superior ou estranha.
O ideais sobre a comunidade dos zapatistas foram formalizados num documento de 1916, a Ley General sobre las Libertades Municipales. Naturalmente o controle estatal nos Conselhos de aldeia foi abolido; os Conselhos eleitos directamente pelos habitantes; o limite temporal dos encargos foi fixado em um ano, com possibilidade de reeleição só depois de um intervalo de dois anos; o controlo da administração económica era uma prerrogativa de cada habitante.
Depois da morte de Zapata e a recuperação do controlo governamental no Estado de Morelos, a Dezembro de 1920, o sistema das autonomias locais foi suprimido pela autoridade e os Conselhos das municipalidades foram nomeados pelo governo do Estado.
Embora entre magonistas e anarquistas das cidades e Zapata e os zapatistas, não tenham existido contatos operacionais directos, ainda fica em aberto a pergunta da existência de contactos entre Ricardo Flores Magón e Zapata. Em todo caso, em 1912 Zapata, favorável ao PLM, avançou com a proposta de uma transferência de Regeneración para Morelos, onde ele teria posto à disposição de Flortes Magón a Fábrica de San Rafael e os meios necessários para fazer um jornal de expansão nacional.
A coisa não teve éxito, por várias razões: pelas detenções periódicas e os problemas de saúde, Ricardo Flores Magón não teve a possibilidade de se mover; também, convenceu-se de que a manutenção da sede da revista nos Estados Unidos teria tido uma maior influência psicológica a favor da acção que ele exercia para evitar uma intervenção armada americana na Revolução mexicana, aproveitando da grande popularidade que tinha naquele país.
Mas Zapata sentia não só a influência de Magón: uma influência direta foi exercida através de Antonio Díaz Soto y Gama, entusiasta das idéias de Tolstoi e Kropotkin, anarcosindicalista da capital que se uniu ao exército zapatista com outros camaradas, tornando-se logo o ideólogo do movimento. Não seria em todo caso exacto definir tout court anarquista o Emiliano Zapata e o movimento dele, faltando aquela clara orientação sistemática que caracterizará Makhno ou Durruti, por exemplo. Fica assente que as influências anárquicas eram as mais evidentes e muitas metas eram comuns, embora faltasse uma identidade global.
Deve-se também considerar que no cenário político mexicano, apenas os anarquistas podiam coerentemente apoiar o programa zapatista e a radicalidade de meios que implicava. O que, na realidade, explica bem a presença de alguns anarquistas e militantes do PLM entre os zapatistas. Infelizmente as coisas, em linha geral, não se encaminharam nesse sentido, como vamos ver.
O ANARQUISMO FORA DOS CAMPOS DE BATALHA - A ALIANÇA COM A BURGUESÍA CAPITALISTA - A DECADÊNCIA
Frente à grande massa de trabalhadores rurais, em 1910, a classe operária mexicana era coisa muito pequena, numericamente falando, mas durante a Revolução acentuou-se notvelmente o seu nível organizativo. Os esforços combinados dos operários mexicanos e de um grupo de exilados espanhóis membros da CNT levaram em 1912 à criação da primeira central sindical, a Casa del Obrero Mundial (COM). Organização ao nível nacional, de orientação anarcosindacalista, que entre 1912 e 1918 hegemonizou o movimento operário mexicano. A COM entrou em contacto operativo com o Grupo Luz cujo membro mais notável era Juan Francisco Moncaleano. Este grupo de anarquistas expressou muitas das ideias fundamentais da COM no Manifesto Anarquista del Grupo Luz.
Francisco Madero não foi muito liberal com a COM: fechou-a, suprimiu o órgão de imprensa dela, aprisionou os líderes sindicais e exilou os membros estrangeiros. Paralelamente apoiou, em oposição à COM, a muito menos activa Gran Liga Obrera.
Ele não teve o tempo necessário para uma luta de longa duração contra os anarcosindicalistas, mas com Huerta as coisas foram muito piores, sendo o general um antagonista absoluto do próprio conceito de movimento operário, tendo as mãos mais livres do que Madero e usando-as com máximo prazer. A COM, que entretanto se tinha reforçado, teve a audácia de convocar para o 1° Maio do 1913 em Ciudad de México uma grande manifestação comemorativa dos mártires de Chicago, que juntou pelo menos 20.000 pessoas. Seguiram-se detenções "aos molhos" e Huerta, da mesma maneira que Madero, tentou dar vida a organizações rivais da COM.
Caído Huerta, a COM ficava frente de um dilema que não se apresentava fácil: apoiar Villa, Zapata ou Carranza? Problema de extrema delicadeza política, porque o seu resultado teria produzido conseqüências de longa duração e, por isto, os eventuais erros seriam fatais. O que realmente aconteceu.
Os mais próximos da COM eram Zapata e seus guerrilheiros camponeses, nada fechados em relação aos problemas dos trabalhadores urbanos. A 7 de Novembro de 1915, nos territórios do Sul controlados pela guerrilha zapatista, foi publicada uma Ley del Trabajo que previa o dia de trabalho de 8 horas, a proibição de trabalhar para os menores de 14 anos, a entrega da administração das fábricas às cooperativas de trabalhadores, o salário mínimo garantido. Estas normas nasciam do coração mesmo da revolução rural, duma matriz comunalista indígena. Por isto, não se movia nas diferentes ópticas urbanas da COM e formando-se autonomamente, não tinha em conta problemas como o controle das propriedades estrangeiras, a igualdade de tratamento e salário entre os trabalhadores mexicanos e estrangeiros, o direito de greve e a criação dum estatuto de protecção para os sindicatos. Todas estas coisas, naturalmente, faziam parte da bagagem da COM, que o programa zapatista não tinha, mas às quais não se opunha, de qualquer maneira.
Não há dúvida de que se podiam intergar pacificamente e completarem-se os dois programas, bastava que a COM apenas tivesse querido perguntar isto, mas..., havia um "mas", e que teve um peso decisivo: a maioria dos zapatistas cultivava sentimentos religiosos, então... o jogo estava decidido!
A conclusão -fatal para o movemento operário- foi que, entre a aliança com revolucionários inflexíveis como os zapatistas mas não ateus, e a aliança com a burguesia capitalista agrária e urbana, representada por Carranza, a ateísta pureza anarquista da maioria dos membros da COM escolheu este último! E assim amadureceu uma oposição, também violenta e militar, entre movimento operário organizado e camponeses revolucionários.
Esta escolha não foi bem digerida por todos os membros da COM, como se viu quando - fugido Carranza da capital e chegadas as tropas de Villa e Zapata - os membros da COM dividiram-se em três grupos: a maioria estava com Carranza, muitos da minoria uniram-se a Villa e o resto a Zapata, entre os quais Antônio Díaz Soto y Gama e Luís Méndez.
Na realidade, foi Carranza que usou os seus novos e temporários aliados anarcosindicalistas. Pela ajuda militar contra Villa e Zapata (para Carranza, vital), concedeu-lhes carta-branca na organização do trabalho: mas esta era sempre revocável, uma vez consolidado definitivamente o poder dele. Os anarcosindicalistas aliados a Carranza formaram os famosos "Batalhões Vermelhos" que participaram imediatamente nas batalhas contra os zapatistas nos arredores da capital.
Alguns historiadores modernos tentaram dar uma explicação/justificaão desta aliança - indubitavelmente antinatural no plano das premissas e dos objetivos - sublinhando que o mundo da comercialização e industrialização que Carranza e os seus representavam e promoviam, em substância era o mundo onde trabalhavam e viviam os operários urbanos. Mas é significativo que, da prisão dos EUA onde estava novamente detido, Ricardo Flores Magón tenha condenado violentemente o acordo com Carranza, afirmando que assim os anarcosindicalistas se venderam.
Certamente, naquela altura eles receberam alimentos, dinheiro, equipamentos, sitios onde reunir-se, liberdade de imprensa e acção mas, como notou a posteriori Rosendo Salazar (um dos membros da COM que foram a favor do acordo) por aquela escolha, a COM tinha assinado a sua condenação a morte e tinha traído, por outro lado, os seus próprios princípios a troco de vantagens de curta duração.
A evidência da anomalia desta aliança entre o Carranza e a COM está nos fundamentos do conceito político do próprio Carranza e que ele não escondeu a ninguém. O futuro do México, para ele, estava representado pela empresa capitalista, a propriedade privada dos meios de produção, o individualismo social, o Estado forte que, juntamente com as élites económicas iria dar prontamente bem-estar às massas.
Os problemas entre o Departamento do Trabalho de Carranza e a COM começaram cedo. Em 1916, foram dissolvidos os Batalhões Vermelhos, houve um período de greves entre o fim de 1915 e o princípio de 1916 e depois da desvalorização do peso mexicano e das agitações que isto causou, chegou-se à luta final entre Carranza e a COM, luta cujo resultado era muito previsível.
A COM no mês de Julho de 1916 apelou à greve geral, com uma participação maciça dos trabalhadores e Carranza enviou as tropas para ocupar as sedes da COM e aprisonar os membros da sua Direcção. Em todo o país, os soldados desmantelaram os sindicatos aderentes à COM e aprisionaram os seus maiores expoentes; os governadores dos Estados e os chefes militares receberam a ordem de apreender toda a literatura subversiva em circulação e, se possível, de aprisionar os autores.
Tudo isso sem tiroteios - embora Carranza tenha feito ressuscitar uma velha lei de 1862, que assimilava a greve à traição, com a sanção da pena de morte - só porque, inesperadamente, os tribunais militares absolveram os promotores da greve.
Assim a derrota dos anarcosindicalistas ex-aliados de Carranza foi total. Os outros seguiram o seu destino nas hostes de Villa e Zapata.
Em 1921, depois da matança de Carranza, alguns membros da velha COM, aderentes ao sindicato IWW e elementos de orientação comunista fundaram a Confederación General del Trabajo (CGT), imediatamente hostilizada pelo governo, que impediu até de usar o serviço postal para distribuir o jornal confederal Via Libre.
O governo dirigiu os seus favores à Confederación Obrera Regional Mexicana (CROM), na pragmática óptica carranzista de que (ao contrário de Huerta) assumia a moderna inevitabilidade dos sindicatos e preferia tentar a carta da subordinação deles, em vez de os destruir. Para este objetivo, a CROM era ideal: oportunista, orientada para uma conciliação entre trabalho e capital, promotora da profissionalização da burocracia sindical. A CGT era - e foi pelo menos até o 1930 - um sindicato libertário, programado para a acção directa, sem burocratização, em que as responsabilidades eram voluntária e gratuitamente assumidas, com democracia directa, consenso como meio principal para tomar as decisões, autonomia em relação ao Estado e aos partidos, antinacionalista e favorável à socialização dos meios de produção.
Um dos apoios delas era a Federación Comunista del Proletariado Mexicano (FCPM), organização libertária fundada no 1920, conhecida por ter usado os piquetes pela primeira vez durante as greves, para impedir a entrada nos estabelecimentos.
Os anos 20 foram um período negativo, crucial para o anarquismo mexicano. Zapata morto, em 1919 e vencidos os revolucionários rurais do Estado do Sul; morto na prisão nos Estados Unidos, Ricardo Flores Magón; viragem à direita de 360° feita por Soto y Gama, que foi eleito deputado e num discurso parlamentar pontificou sobre a impropriedade do socialismo em relação às necessidades do México; Antonio Villa Real que se tornou secretário do Ministério da agricultura; etc..
Além disto, em 1930, começaram a enfraquecer-se os ideais libertários e os dirigentes da CGT ficaram mais sensíveis à corrupção exercida por políticos e patrões, chegando a dar cobertura sindical às práticas de despedimenro. No entanto, a CROM tentou subtrair espaços de hegemonia à CGT.
Para se assistir a uma renovação dos ideais anarcosindicalistas deve-se esperar até à constituição, em 1941, da Asociación Mexicana del Trabajo (AMT), que sobreviveu até aos anos '70, e cujo lugar foi tomado sucessivamente pela Frente Auténtico del Trabajo (FAT), onde ainda hoje actuam uma parte dos libertários mexicanos, presente mais ou menos em 15 Estados, organizada em assembleias, favorável a um socialismo autogestionario, e cuja actividade está baseada em quatro sectores básicos: operário, urbano, rural e cooperativista. Em várias ocasiões participam nas lutas organizadas pelos coletivos anarquistas.
Em termos de saldo material o balanço do anarquismo na Revolução mexicana aparece certamente negativo. Derrotados os zapatistas, anarcosindicalistas urbanos aliados com Carranza (vimos os resultados), fracassos na acção do PLM e da COM, ausência forçada de Ricardo Flores Magón durante os acontecimentos revolucionários, deriva conservadora dos vencedores burgueses na Revolução. Positivos, ficam o papel dos magonistas na preparação da luta contra Porfírio Díaz e o semi-anarquismo do movimento zapatista. Contam-se heróis e mártires, não vencedores.
Mas, se é verdade o que disse Ernesto Guevara - "as batalhas vencem-se sempre" (porque só as não combatidas constituem uma derrota seca) - então devemos dizer que no México não morreram os ideais anarquistas e libertários: as bandeiras (e os ideais) do magonismo e do zapatismo voltaram hoje a ondular nas lutas sociais mexicanas. Mas isto são coisas recentes e não sabemos se premonições, ou não, duma revolução futura.
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